Peça 1 – crime comum ou crime político?
Vamos a mais um Xadrez sobre o caso Marielle, recorrendo ao recurso da teoria do fato. Trata-se de um método de organizar os fatos em torno de uma narrativa lógica, verossímil, uma hipótese de trabalho que ajude a organizar as ideias – e que poderá ser alterada à luz de novos fatos que surjam.
Há duas narrativas sobre o assassinato da Marielle. Uma, tratando como crime comum, embora com componentes políticos. Seria a vingança contra o PSOL, por ter impedido que elementos influentes do MDB ganhassem foro especial e escapassem das investigações da Operação Furna da Onça.
Outra, que defendo, tratando como crime político. Ambas as hipóteses exigem investigações diferentes. O problema das investigações é tratar como crime comum um crime político.
Peça 2 – o contexto político do crime
Uma vereadora é assassinada com 15 dias de intervenção militar. Há inúmeras maneiras de matar sem estardalhaço. Marielle foi assassinada em pleno centro do Rio de Janeiro, com rajadas de metralhadora, os assassinos driblando os sistemas de câmeras no trajeto do carro que os transportou, um crime à altura de Al Capone.
É evidente que a intenção foi desmoralizar a intervenção militar e provocar comoção popular. Nas investigações sobre as pesquisas feitas pelos assassinos no Google, constatou-se que procuravam críticos da intervenção e se concentraram em Marielle, que fora indicada presidente da Comissão da Câmara para acompanhamento da intervenção.
O caminho das investigações, portanto, seria identificar os grupos interessados em frustrar a intervenção.
O impeachment já havia acontecido. A grande questão passava a ser a manutenção das eleições de 2018. E o protagonismo militar era exercido pelos generais de pijama através dos Clubes Militares. Desde 2017, os generais Hamilton Mourão e Augusto Heleno já defendiam a intervenção militar.
Quando veio a intervenção militar no Rio, Bolsonaro entendeu como forma de fortalecer
Michel Temer e Rodrigo Maia. Foi a voz mais enfática contra a intervenção. Um mês antes da morte de Marielle, chegou a chamar Rodrigo Maia de vagabundo.
Se a intervenção era para garantir o projeto Temer-Maia, obviamente quem matou Marielle era contra o projeto, e contra a intervenção.
Peça 4 – as primeiras investigações sobre o caso Marielle
Até então, não havia sinais de linhas de transmissão entre os incendiários da reserva – Mourão e Heleno – e o Alto Comando. Os primeiros indícios da volta da tutela militar no país foram as declarações do general Villas Boas, chantageando o STF um dia antes do julgamento de Lula.
No primeiro dia de 2019, no evento de posse do Ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, Bolsonaro se dirigiu a Villas Boas: “General Villas Boas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, disse Bolsonaro no evento de posse do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.
Havia diferenças entre as propostas de Mourão e Heleno. Mourão defendia uma intervenção militar geral contra as eleições, o que colocaria no comando do país um general, não Bolsonaro. A estratégia de Heleno era apostar nas possibilidades eleitorais de Bolsonaro. Daí pode-se entender recente elogio de Bolsonaro, também creditando sua posse a Heleno.
Depois das eleições, aliás, Villas Boas sugeriu o nome de Heleno para Bolsonaro. Nem foi preciso, pois o general já fazia parte do círculo íntimo de Bolsonaro. Mas o movimento revela a perfeita sincronia entre o poder militar, representado por Villas Boas, e as afinidades estratégicas de Villas Boas e Heleno.
Esse ponto é relevante para entender melhor as manipulações iniciais do inquérito de Marielle.
A intervenção se deu sob comando das forças de Haiti, cujo guru maior era o general Heleno. Na morte de Marielle, a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro estava sob controle da intervenção. E, como chefe de polícia civil, foi colocada Rivaldo Barbosa, oriundo das Forças Armadas.
Foi um período em que as investigações emperraram, a ponto do próprio Ministro da Segurança Pública, Raul Jungman, alertar para forças políticas poderosas atrapalhando as investigações.
Peça 5 – entra Witzel
Terminadas as eleições, o jogo muda. Wilson Witzel é eleito para o governo do Estado, no rastro do fenômeno Bolsonaro. Mas, antes do terceiro mês se lançou candidato a presidente da República. Não havia lógica. Witzel era um neófito em política, eleito no embalo do fenômeno Bolsonaro, dependia do PSL. Teria que dispor de algum trunfo na manga para um lance de tamanha ousadia.
Nos meses seguintes, ficou claro que seu trunfo era o controle das investigações sobre a morte de Marielle, o assassinato de uma vereadora com repercussão internacional. Rivaldo Barbosa, o Chefe da Polícia indicado pelas forças da intervenção, foi encostado, depois de ter sido acusado de ter montado empresas de inteligência no período em que comandou a Polícia. E as investigações caíram nas mãos da polícia de Witzel.
Entende-se, aí, o desabafo recente de Bolsonaro – no vídeo em que atacou a reportagem do Jornal Nacional – dizendo que após a eleição, Witzel transformou sua vida em um inferno. No mesmo vídeo, mencionou as ameaças que pairavam sobre os filhos.
Peça 6 – Witzel e a disputa política pelas milícias
Hoje em dia, o destino da República está no Rio de Janeiro, em uma disputa pelo controle das milícias e das investigações sobre a morte de Marielle.
Primeiro acabou com a Secretaria de Segurança, que era o órgão para controle político dos policiais. Em seu lugar, criou a Secretaria de Estado da Polícia Militar e a Secretaria de Estado da Polícia Civil.
Havia duas razões. Ainda está em vigor uma herança da ditadura militar, que subordina cada comandante da PM à aprovação das Forças Armadas. Jamais houve um veto após a redemocratização, mas a possibilidade persiste. Com as mudanças, tirou os Secretários do alcance das Forças Armadas. Foi a primeira razão.
A segunda razão foi a de blindar-se nas negociações políticas com as milícias – que têm enorme influência eleitoral nas regiões controladas. Garotinho e Sérgio Cabral atuavam a seco nas negociações, assim como os Bolsonaro, e se queimaram com isso. Com o modelo adotado por Witzel, as negociações ficam a cargo dos Secretários da PM e da PC, poupando o governador de desgastes.
Hoje em dia, a articulação do poder das milícias não passa mais pelo Palácio da Guanabara. Fica dentro das corporações policiais. São os secretários que operam o poder, e não o governador diretamente. Milícia é assunto de polícia. Sai da zona de risco político. Com esse movimento, o poder da milícia vai se fundindo cada vez mais com a própria estrutura de Estado.
No dia em que forem feitos levantamentos abrangentes sobre os chamados autos de resistência, homicídios praticados por policiais, vai se perceber uma enorme concentração em áreas dominadas pelo Comando Vermelho; e uma boa redução da letalidade em áreas dominadas pelas milícias. Por exemplo, não há registro de autos de resistência em Campo Grande ou Santa Cruz, áreas dominadas pelas milícias.
Hoje em dia, a área das milícias é maior que a do tráfico. Em pouco tempo, haverá só as milícias no Rio. Está foi a razão do 3º Comando, rival do Comando Vermelho, ter se aliado a milícias criando a variante das narcomilícias.
Peça 7 – o choque de jurisdição
O grande embate entre ele e Bolsonaro se dará no caso Marielle, entre a polícia de Witzel e a de Bolsonaro. E a federalização visará blindar Bolsonaro.
Um dia antes de deixar o cargo, a Procuradora Geral Raquel Dodge tentou federalizar as investigações. Quando apareceu o depoimento do porteiro, ocorreu o mesmo movimento da parte do Ministro da Justiça Sérgio Moro. Ele e o PGR Augusto Aras condenaram o porteiro antes mesmo de conhecer o inquérito. E Moro insistiu na federalização. Inventou um crime contra a Lei de Segurança Nacional para colocar a Polícia Federal no encalço do porteiro e arrancar um desmentido para sua declaração.