A pandemia do novo coronavírus trouxe à tona a importância do papel do Estado para estabilizar a economia e dar proteção social aos mais vulneráveis, criando uma fissura no consenso que vinha marcando o debate econômico no Brasil, de que o Estado precisa ser enxugado e reduzido ao mínimo possível. Esta é a temática trabalhada no novo livro da economista Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP), lançado neste mês de junho. “Curto-circuito: O vírus e a volta do Estado” (Editora Todavia) é o segundo livro da autora, que publicou “Valsa Brasileira” em 2018.
Laura conversou com o Sul21 nesta terça-feira (23) sobre o significado desse curto-circuito que dá nome ao livro, as mudanças nas discussões econômicas e no papel do Estado trazidas pela pandemia. “O governo foi obrigado a responder com uma estratégia oposta àquela que era defendida no discurso desde as eleições de 2018”, destaca.
Com relação às saídas para a crise econômica provocada pelo vírus em escala global, a economista destaca que, por ser uma situação gerada por um problema de saúde, e não por um movimento de natureza econômica, não será possível sair dela sem resolver primeiro a crise sanitária.
“A recuperação da economia depende da solução daquilo que originou a crise, que é a pandemia, que é o contágio pelo vírus. De modo que já está ficando claro em todos os países que estão tentando a reabertura que o risco de novos surtos, de novas ondas de contágio, isso tudo faz com que os consumidores não retornem às suas atividades habituais e também que os próprios produtores se sintam inseguros para fazer investimentos e retomar a sua produção”, diz.
A seguir, confira a entrevista com Laura Carvalho:
A tua última entrevista ao Sul21 ocorreu após o lançamento do teu livro anterior, Valsa Brasileira, quando estávamos em outro momento da economia. Na época, estávamos no governo Temer e em meio a um período de uma espécie de “consenso” das ideias liberais, que se manteve e foi aprofundado com o Paulo Guedes. O que é esse curto-circuito que dá nome ao novo livro?
Na verdade, a gente vinha já há cinco anos, inclusive isso foi objeto da última parte do Valsa Brasileira, numa agenda econômica que, claro, em graus distintos, de 2015 para cá, certamente de forma mais radicalizada no governo Bolsonaro, era pautada pela ideia de que cortar gastos públicos e reduzir o tamanho do Estado seria a saída para o crescimento econômico.
E essa agenda, na verdade, revelou resultados muito frustrantes nos últimos anos. Inclusive, logo antes dessa pandemia, a gente tinha tido a divulgação do PIB de 2019 e já tinha havido uma certa decepção com a desaceleração da economia em 2019 em relação aos dois últimos anos de governo Temer, que já não eram de um crescimento muito robusto, eram uma estagnação essencialmente.
Isso já tinha começado a trazer um questionamento da capacidade dessa agenda de entregar resultados para a população. Aí, claro, a pandemia chega nesse contexto e causa uma ruptura com a estratégia anterior, ainda que de forma muito imposta pela realidade.
Então, o governo Bolsonaro e a equipe econômica se viram obrigados a gastar muito mais para enfrentar essa pandemia, a aprovar medidas, muitas delas pressionadas pelo sociedade civil e até aprovadas primeiro pelo Congresso, mas acatadas pelo governo.
O que eu chamei de curto-circuito, na verdade, foram as próprias contradições, que ficaram mais claras na medida em que o governo foi obrigado a responder com uma estratégia oposta àquela que era defendida no discurso desde às eleições de 2018.
Essa ruptura do consenso liberal, pelo menos com a ideia de que só existe um caminho e de que o Estado não tem o seu papel, e a gente está vendo nessa pandemia liberais como o Rodrigo Maia, que tu até cita no livro falando da importância dos gastos públicos, mas sempre foi um representante das alas mais liberais do Congresso…
Sim, mas mesmo ele já falava, inclusive, com o resultado de 2019. Um dos elementos que eu trago no livro é que aquele resultado do PIB já tinha provocado uma pequena mudança, o Maia já tinha declarado que a agenda de reformas era insuficiente e aí, claro, a pandemia acelera essa mudança, essa ruptura.
Essa era a pergunta, se tu achas que esses questionamentos ao modelo são algo do período da pandemia ou podem continuar no período posterior? Porque tu também falas, citando Dani Rodrik, da possibilidade da a tendência ser de confirmação de vieses.
A gente fala do Rio Grande do Sul, onde há um “grande consenso” da necessidade de ajuste fiscal sem um fim no horizonte, com anos de cortes nos serviços públicos e achatamento nos servidores. Tu acreditas que os ideólogos do ajuste fiscal também podem ser questionados no futuro ou é mais no momento da pandemia?
Eu acho que isso ainda está em disputa. Primeiro, a questão dos estados e municípios é muito diferente do governo federal, porque o governo federal tem uma capacidade de endividamento que, aliás, está sendo mostrada agora nessa pandemia.
Então, o mito de que o dinheiro tinha acabado também está sendo desfeito à medida que fica claro que o governo federal tem a possibilidade de emitir mais dívida pública numa situação de necessidade para atender as demandas da população.
No caso dos governos estaduais e municipais, é bem distinto. Mas de toda forma, o que me parece é que a gente está num momento de encruzilhada. De um lado, você tem, na sociedade, uma valorização do Estado, seja pelo SUS, seja pelas redes de proteção social, enfim, uma clara mudança na percepção em relação ao que ocorreu, por exemplo, nas eleições de 2018 e antes, quando a população, de algum jeito, se convenceu que o Estado era apenas uma fonte de corrupção e, portanto, era necessário livrar-se do Estado junto com o próprio establishment político.
Era como se você se livrar do sistema fosse se livrar de tudo, incluindo o Estado e os seus papéis. Por isso eu acho que o discurso do Paulo Guedes complementou, de alguma forma, a plataforma bolsonarista, trazendo ainda mais apoios, inclusive das elites econômicas, para o seu projeto.
Mas, me parece que, hoje, os papéis do Estado passaram a estar mais concretos e presentes a partir desse esforço coletivo de combate à pandemia E acho que dentro do governo Bolsonaro há, inclusive, conflitos entre a visão da equipe econômica, que pretende retornar à agenda anterior de corte de gastos e talvez de forma ainda mais agressiva, e isso está claro.
Mas há também, por exemplo, a ala representada pelo ministro da Casa Civil, Braga Netto, que parece querer um caminho distinto, com expansão de investimentos públicos. Então, no próprio governo isso está indefinido e, na sociedade em geral, isso também está indefinido. Me parece que há um crescente questionamento, sim, do que era um consenso em torno dessa necessidade de cortes de gastos como forma de ajuste fiscal permanente.
Por que é possível, neste momento, a expansão do endividamento público?
Sempre foi possível. Em nenhum momento, houve um calote do Brasil na sua dívida pública. Há detentores de títulos públicos interessados nessa dívida pública, a gente tem feito leilões recordes de títulos públicos no mercado. Ou seja, não estamos sofrendo nenhum tipo de restrição em que os investidores não estão mais interessados nessa dívida. Pelo contrário, é um momento de alto risco e a nossa é bastante segura porque ela é em moeda nacional, não é uma dívida externa.
Então, ao contrário da Argentina e de outros países do Hemisfério Sul, nós temos muito mais reservas internacionais do que dívidas públicas em dólar, quase não temos mais dívida pública em dólar. É uma situação muito distinta da que o próprio Brasil teve nos anos 80 e 90.
A dívida pública é em reais, os juros sobre ela são pagos em reais e, por isso, esse caminho tem funcionado. Não é novo, na verdade. Nós já vínhamos emitindo dívida pública a cada ano há muito tempo e como todos os países do mundo. Não é nenhuma situação inesperada, nem singular nossa. Agora, todos os países também estão elevando o seu patamar, a não ser aqueles que estão com dificuldade porque estão com dívida em dólar. Não é o nosso caso.
Mas não seria um risco, dado a provável queda do PIB, estimada hoje em 5% ou mais em 2020, contrair um nível muito elevado de endividamento neste momento?
Não, não me parece que é risco algum. Você tem países com 200% de dívida pública em relação ao PIB, países que vão ultrapassar esse patamar na pandemia. Como eu disse, o Brasil não é um caso de país endividado em dólar, o risco seria se nós estivéssemos endividados com o FMI, com bancos estrangeiros, porque aí a alta do dólar somada à saída de capitais do País faria com que a gente tivesse um risco iminente de calote.
Não é o caso e ninguém espera isso no mercado. Numa situação de emergência, a dívida pública serve justamente para que o governo atue para estabilizar a economia. Então, é natural e o próprio mercado espera que a dívida pública irá subir nos próximos anos, como ao redor do mundo.
Te parece que este também é um ponto que está havendo uma ruptura na classe política e nas discussões econômicas no Brasil? Porque sempre se defendia a ideia de que não se pode criar endividamento, que a Dilma caiu porque tinha aumentado muito a dívida pública. Te parece que, neste momento, também há uma maior compreensão de que o endividamento público não é aquele mal como foi pintado durante o governo Dilma?
Na verdade, a gente nunca deixou de emitir dívida pública. O discurso é uma coisa, a prática é outra. Todos esses anos, incluindo no governo Temer, no governo Bolsonaro. Antes disso, o Brasil sempre emitiu dívida pública.
A questão é se a dívida pública está crescendo ou não em relação ao PIB. E aí, claro, nos anos de maior crescimento econômico, a dívida pública tendia a cair em relação ao PIB. Mas, nos últimos anos, mesmo depois do governo Dilma, a dívida continuava subindo apesar do ajuste fiscal.
Então, na prática, não é nenhuma novidade e sim o discurso de que tinha acabado o dinheiro é que se demonstra um pouco simplista e até enganoso numa situação em que fica claro que o orçamento do governo é muito diferente do de uma família e que o governo tem essa capacidade de se endividar e tem se utilizado dessa capacidade de se endividar como nos outros países.
Esse é o sistema que a gente vive atualmente, é assim que os governos se financiam e hoje a dívida pública brasileira, ainda por cima, paga muito menos juros porque os juros caíram muito, então o custo dessa dívida é muito menor do que já foi no passado.
A classe política pode continuar e não será inesperado se, no ano que vem, esse patamar mais elevado de dívida pública começar a servir novamente como pretexto para justificar cortes agressivos de gastos em determinadas áreas, revisões do pacto de 88 etc. Mas essa é uma disputa política, não é imposta pela técnica. Não há um limite pré-estabelecido na economia para a dívida pública em relação ao PIB. Não existe um patamar máximo que está pré-determinado.
Tem países com patamares muito mais elevados que o nosso. Enfim, é muito mais sobre qual é a qualidade dessa dívida, qual é o custo dessa dívida e como vamos estabilizá-la fazendo a economia crescer nos próximos anos do que realmente termos chegado em algum tipo de limite.
Voltando à questão da pandemia. Existe essa discussão sobre a necessidade de equilíbrio entre salvar vidas e salvar CNPJs e, em determinado momento, tu falas que é uma ilusão achar que basta reabrir as atividades econômicas e os negócios vão retomar o mesmo nível anterior.
Tu dá um exemplo de restaurantes no Texas que, em determinado momento, não chegavam a 20% dos seus negócios, mesmo abertos. Fale dessa falsa relação de que seria possível salvar CNPJs ao custo das vidas.
Essa é uma crise econômica muito atípica porque não foi originada na própria economia, ela tem origem numa pandemia. Então, ela é, primeiro, uma crise de saúde pública, antes de qualquer coisa. A recuperação da economia depende da solução daquilo que originou a crise, que é a pandemia, que é o contágio pelo vírus.
De modo que já está ficando claro em todos os países que estão tentando a reabertura que o risco de contágio, o risco de novos surtos, de novas ondas de contágio, isso tudo faz com que os consumidores não retornem às suas atividades habituais e também que os próprios produtores se sintam inseguros para fazer investimentos e retomar a sua produção.
A única maneira, então, de recuperar a economia é solucionar essa pandemia e a crise sanitária, de modo que essa ideia criada pelo governo Bolsonaro, de que a crise na verdade seria causada pelas medidas quarentenárias, é totalmente equivocada. As medidas quarentenárias são para o combate à origem da crise econômica e não a origem da crise econômica. Portanto, removê-las não faz com que a economia se recupere.
Tu tens sido bastante ativa na defesa da renda básica emergencial. Passado este período, está consolidada a ideia de que é possível o Estado brasileiro oferecer uma renda básica que vá além do Bolsa Família e que consiga dar maior sustentabilidade para as camadas mais vulneráveis da população?
Acho que é possível, acho que é desejável, inclusive, que a gente caminhe para uma universalização do benefício, mas isso tem que ser pensado conjuntamente num pacote único com o lado da tributação. Então, só seria possível estender uma rede mais ampla de proteção social, o que é absolutamente fundamental dadas as transformações que a gente tem visto no mercado de trabalho e o alto grau de vulnerabilidade que a gente tem de trabalhadores informais e precarizados, aceitando empregos indignos, jornadas indignas.
Quer dizer, um patamar mínimo de renda teria capacidade de transformar mesmo a sociedade, conferindo poder de negociação para esses trabalhadores. Mas ele teria que vir com uma tributação mais alta das rendas do topo e do patrimônio do topo. Sobretudo das rendas mesmo, que são pouco tributáveis por conta não só de uma alíquota máxima de imposto de renda, de 27,5%, que é muito inferior a de outros países, mas também por conta das isenções que são concedidas.
Por exemplo, isenção para pagamento de Imposto de Renda da Pessoa Física sobre lucros e dividendos. E as próprias deduções que são oferecidas aos gastos privados com saúde e educação no Imposto de Renda, que a gente sabe que, num país como o Brasil, onde educação e saúde privadas estão muito relacionadas com a nossa concentração de renda, estão muito concentradas no topo.
Isso significa um mecanismo muito regressivo de redistribuição em vez de um mecanismo que a gente deseja, em que serviços públicos e a garantia de renda sejam universais e, do outro lado, a gente tenha uma estrutura justa de tributação.