A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acaba de proferir sentença histórica. Determinou que o Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3) analise novamente ação civil pública contra três delegados da Polícia Civil de São Paulo pela tortura praticada nos tempos que serviam ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi).
São eles Aparecido Laerte Calandra, David dos Santos Araujo e Dirceu Gravina.
Foi a primeira ação do Ministério Público Federal, em 2008, visando contornar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal federal (STF) à Lei da Anistia, que englobou até crimes cometidos após sua promulgação.
Além da indenização, propunha responsabilização pessoal, afastamento imediato das funções, perda dos cargos e aposentadoria.
A ação esbarrou nas sentenças de 1a e 2a instância, baseadas nas interpretações da Lei da Anistia sancionadas por ex-Ministros do STF, como Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim.
Não apenas a reparação financeira, mas a reparação moral – a obrigação do pedido de desculpas – também encontra amparo na legislação.
Segundo o relator, ao contrário do entendimento do TRF3, a jurisprudência do STJ é de que as ações cíveis fundamentadas em atos de perseguição política, tortura, homicídio e outras violações de direitos fundamentais.
O torturador Gravina
Gravina usava cabelo comprido e barbas e seu nome de guerra era Jesus Cristo. Em uma das sessões de tortura, uma mulher estava no pau-de-arar levando choque e banhos de água fria. Em determinado momento, a vítima conseguiu se desvencilhar e agarrou Gravina, transmitindo o choque para ele. Imediatamente ele mandou soltar o pau de arara, para que ela caísse no chão. A moça precisou ser hospitalizada.
David dos Santos Araújo, o Capitão Lisboa, deu a paulada final que matou Joaquim Seixas, pai do ex-preso político Ivan Seixas. Não apenas isso. Também abusou das filhas de Joaquim, que sequer eram militantes. Todos os filhos de Joaquim foram colocados em um carro da Folha de S. Paulo para ver as notícias da morte do pai, publicadas nos jornais daquela manhã.
Já Calandra, ou Capitão Ubirajara, tornou-se o braço direito de Romeu Tuma, quando ele se tornou delegado geral da Policia Federal. Participou da morte de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho. Torturou pessoalmente Paulo Vanucchi, Nilmário Miranda e Amelinha Telles.
APARECIDO LAERTES CALANDRA
É delegado aposentado da Polícia Civil. Requisitado para trabalhar no DOI/CODI traz alguns documentos firmados pelo réu nesse destacamento), utilizava a alcunha de CAPITÃO UBIRAJARA.
Foi reconhecido por diversas vítimas como autor de torturas. Em função do seu envolvimento com a repressão militar recebeu a condecoração do Exército “Medalha do Pacificador”, em 1974. CALANDRA trabalhou na Polícia Federal a partir de 1983, quando o também Delegado de Polícia Civil ROMEU TUMA assumiu a função de Superintendente dessa força federal em São Paulo. O réu foi encarregado nessa época de zelar pelos arquivos do DOPS, que haviam sido transferidos para o governo federal. Consta, inclusive, que, sob a guarda de CALANDRA, parte substancial do arquivo foi eliminada.
i) Tortura e desaparecimento de HIROAKI TORIGOE :
Sua prisão deu-se na rua Albuquerque Lins, bairro de Santa Cecília, em São Paulo, por uma equipe chefiada pelo delegado Otávio Gonçalves Moreira Jr., vulgo Otavinho, em 5 de janeiro de 1972,sendo levado para o DOI-CODI, órgão chefiado pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra e pelo, à época, capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo. Segundo o documento elaborado pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil intitulado “Aos Bispos do Brasil”, de fevereiro de 1973, encontrado nos arquivos do DOPS/SP: “Ferido, foi levado para o DOI/SP onde foi intensamente torturadopela chamada equipe B, chefiada pelo capitão Ronaldo, tenente PedroRamiro, capitão Castilho, capitão Ubirajara e o carcereiro Maurício, vulgo Lungaretti do DPF.”
Maria Amélia, César e Danielli foram presos em São Paulo, em 28 de dezembro de 1972, e submetidos a sessões de torturas.
Durante três dias, Danielli foi intensa e continuadamente torturado sob o comando do então major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, do capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo e do Capitão Ubirajara, codinome do delegado de polícia Aparecido Laerte Calandra. MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA TELES e seu marido CESAR AUGUSTO TELES relataram à Auditoria Militar, já em 1979, detalhes das violências que sofreram. Sequestrados no dia 28 de dezembro de 1972, foram levados para a sede do destacamento militar na Rua Tutóia. Arrastaram-nos para três salinhas separadas, duas no andar de cima e uma na parte térrea. Nessas salas, havia o equipamento de torturas: cadeiras-do-dragão, onde éramos amarrados e levávamos choques elétricos por todo o corpo nu, “paus-de-arara”, palmatórias e toda uma aparelhagem de violentação do ser humano (…) Durante todo o tempo, ouvimos seus gritos [de CARLOS NICOLAU DANIELLI]de dor que foram se tornando cada vez mais fracos e roucos. (…) No fim do segundo dia de prisão, pudemos ver Danielli, já quase morto, nu, meio sentado no chão e encostado à parede, com a cabeça tombada, os olhos semi-abertos e a barriga enorme, muito inchada, seu corpo cheio de manchas roxas e feridas. (…) No dia 30, o corpo foi retirado da OBAN numa maca. Estava todo sujo de sangue: nos ouvidos, boca, nariz. Danielli estava morto. A participação do réu CALANDRA nessa sequência de fatos é explicitada na descrição do processo de montagem da farsa sobre o homicídio: Depois, no dia 5 de janeiro de 1973, o “Capitão Ubirajara”, um dos torturadores, chefe de uma das três equipes de nossos algozes, nos mandou buscar e mostrou-nos um jornal onde estava estampada a manchete em letras garrafais: “Terrorista morto em tiroteio”. Não pudemos nos conter diante de tamanho absurdo. “É mentira”,retrucamos com veemência. “Quem o matou foram vocês, que não deixaram de torturá-lo, um só instante. Ele morreu sob as torturas e não em tiroteio.” O “Capitão Ubirajara” ainda tentou nos convencer de que realmente Danielli tinha se recuperado das torturas e saí do para um encontro com um companheiro, sendo morto num tiroteio travado entre este e os policiais. Retrucamos novamente: “Ele estava morto naquela maca. Ele saiu morto daqui. O “Capitão Ubirajara” simplesmente deu de ombros e nos falou: “Essa é a versão que daremos para a sua morte. E fiquem vocês sabendo que poderão ter também uma manchete igual a essa”.
Distribuíram choques nos ouvidos, na boca, nos tornozelos, nos seios, no ânus, na vagina. Numa ocasião caí numa cama de campanha, semi-acordada. Um dos torturadores aproveitou-se para esfregar-se em mim, masturbando-se, jogando esperma. Poderia haver algo pior? Sim. Poderia. Um dia eles foram buscar meus filhos Janaína, de cinco anos, e Edson Luís, de quatro. Colocaram-me na cadeira do dragão, toda urinada e suja de vômito e me exibiram as crianças. Jamais esquecerei que Janaína perguntou: mãe por que você está roxa e o pai, verde? (relato de MARIA AMÉLIA TELES, em entrevista à RevistaAtenção, transcrita no requerimento de indenização formulado combase na Lei do Estado de São Paulo nº 10.726/01).
Outro documento que revela a participação do réu CALANDRA na perpetração de graves violações aos direitos humanos consiste em correspondência localizada no arquivo da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, enviada pelo preso político MANOEL HENRIQUE FERREIRA a DOM PAULO EVARISTO ARNS, então Cardeal Arcebispo de São Paulo, em 1976. FERREIRA relata que, após preso (maio de1971), foi torturado no DOI/CODI do Rio de Janeiro, no Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) também no Rio de Janeiro, assim como no DOI/CODI de São Paulo e no DOPS desta cidade. Ele relaciona 26 agentes pelos quais foi seviciado, dentre os quais: CAPITÃO UBIRAJARA e DIRCEU (J.C.), além de CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, DALMO LUIZ CIRILLO, PAULO BORDINI, JOÃO LUIZ, PEDRO RAMIRO, EDSEL MAGNOTTI, JOSÉ CARLOS TRALLI e MAURÍCIO JOSÉ DE FREITAS, todos lotados em São Paulo (DOI/CODI e DOPS). É fato que CALANDRA recusa ser CAPITÃO UBIRAJARA. Todavia, ele foi reconhecido pelas vítimas, tanto no período em que trabalhou na Polícia Federal (ver matéria do JORNAL DO BRASIL, de 1º de abril de1992, como por ocasião de sua nomeação para a chefia do Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo, em 2003, o que gerou forte repercussão na opinião pública.
Uma foto de Calandra (…) datada de 2001 e exibida pela TV Globo depois que a Folha noticiou o caso, na última segunda-feira, foi reconhecida por alguns ex-presos políticos, entre os quais Maria Amélia de Almeida Teles (…).“Ele [Calandra] comandava as sessões de tortura, comandava os interrogatórios”, afirmou Teles. Ao ser questionado sobre o testemunho da ex-presa política, Calandra elevou o tom de voz: “Essa mulher é terrorista. Eu investiguei essa mulher, e ela é terrorista. Você sabia que ela foi processada por terrorismo? Sei que foi.” Flagrado pela reportagem nesse ato falho (reconhecimento da própria vítima), tentou retificar: “Antes eu não conhecia [Maria Amélia]. Fui investigar depois.”ARTUR MACHADO SCAVONE, que também foi preso e torturado no DOI/CODI, afirmou peremptoriamente – em depoimento ao Ministério Público Federal – que CAPITÃO UBIRAJARA é o réu APARECIDO LAERTES CALANDRA: Nos três primeiros dias sofreu torturas, sempre na cadeira do dragão. A cada dia era uma equipe de interrogatório diferente. Além da equipe do MANGABEIRA foi torturado pela equipe liderada pelo CAPITÃO UBIRAJARA, codinome do delegado CALANDRA. Soube o nome do CALANDRA quando viu reportagens com sua foto. Pode afirmar com absoluta certeza que CAPITÃO UBIRAJARA é o delegado CALANDRA (nesse momento foram exibidas duas fotos de APARECIDO LAERTES CALANDRA, publicadas na Revista Veja de8/4/92 e na Revista Já do Diário Popular de 30/07/2000 e o depoente confirmou se tratar do CAPITÃO UBIRAJARA).
A imprensa divulgou, ainda, notícias de CALANDRA ter participado da tortura de: a) PAULO VANNUCHI (Revista Veja, 8 de abril de 1992); b) NÁDIA LÚCIA NASCIMENTO (idem); e c) NILMÁRIO MIRANDA (Revista Época, 17 de abril de 2003)
David dos Santos Araujo
É delegado de Polícia Civil aposentado. No DOI/CODI utilizava o nome falso de CAPITÃO LISBOA. No próprio acervo remanescente do arquivo do DOPS – atualmente custodiado no Arquivo do Estado de São Paulo– consta ficha sobre sua pessoa, nos seguintes termos:
No relatório da Presidência da República, é citado no caso relativo à prisão e morte de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS: No processo formado contra o MRT na Justiça Militar, consta uma fotografia do cadáver de Joaquim Seixas com inequívocos sinais de espancamento e um tiro na altura do coração. Apesar disso, a necropsia, assinada pelos legistas Pérsio José B. Carneiro e Paulo Augusto de Queiroz da Rocha, confirmou a versão oficial, sem identificar o que poderia ter provocado as lesões corporais. Suaesposa e filhos, além de outros presos políticos, denunciaram mais tarde os responsáveis pelas torturas e execução de Joaquim Alencar de Seixas: o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante da unidade, o capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, subcomandante, o delegado Davi Araújo dos Santos o investigador de polícia Pedro Mira Granzieri e outros identificados apenas por apelidos.
O envolvimento de DAVID DOS SANTOS ARAUJO na tortura e morte de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS é também destacado no Dossiê Ditadura:
No dia seguinte, 17 de abril, os jornais paulistas publicaram uma notaoficial dos órgãos de segurança estampando a notícia da morte em tiroteio de Joaquim Alencar de Seixas. Contudo, ele não estava morto, pois ainda sofria as torturas, o que foi testemunhado por seu filho Ivan, sua esposa e suas duas filhas, Ieda e Iara. Por volta das 19 horas do dia 17, Seixas foi morto. Sua esposa Fanny viu os policiais estacionarem uma perua C-14 no pátio de manobras, forrarem seu porta-malas com jornais e colocarem o corpo que reconheceu ser o de seu marido. Nesse momento, ouviu um policial perguntar a outro: “De quem é este presunto?”. E como resposta a afirmação: “Este era o Roque”, codinome utilizado por Seixas. (…) Os assassinos de Joaquim Alencar de Seixas foram identificados por seus familiares e companheiros como o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, o capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, o delegado Davi Araújo dos Santos, o investigador de polícia Pedro Mira Granziere e vários outros, conhecidos apenas por apelidos. A trajetória de JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS e de seu filho IVAN AKSELRUD SEIXAS foi ainda objeto de indignação por parte dos presos políticos do Presídio da Justiça Militar Federal em São Paulo em carta enviada ao então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Dr. CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, em 23 de outubro de1975. Constam ali a identificação de DAVID DOS SANTOS ARAUJO/CAPITÃO LISBOA e a denúncia das diversas formas de violência praticadas naquele lugar. A Procuradoria da República em São Paulo colheu o depoimento de IVAN SEIXAS. Assim descreveu o dia em que foi preso (16 de abril de 1971):Na sala de tortura o depoente foi pendurado no “pau de arara”. Em outra parte da sala, dividida apenas por um tapume, seu pai foi posto na “cadeira do dragão”. Foi torturado por uma equipe de umas cinco pessoas, dos quais conseguiu identificar os seguintes: CAPITÃOLISBOA, alcunha de DAVID DOS SANTOS ARAUJO, AMICI, alcunha de JOÃO JOSÉ VETORATTO, Dr. NEI, alcunha de ÊNIO PIMENTEL SILVEIRA. Esporadicamente participava o DALMO CIRILLO. Que consegue identificar essas pessoas em função da comunicação que eles mantinham entre si, a qual acabava traindo o codinome. Que DAVID DOS SANTOS ARAUJO foi o agente no qual o depoenteacertara o soco durante o espancamento no pátio, acima referido. DAVID DOS SANTOS ARAUJO foi o maior torturador do depoente, era “quem mais batia”. DAVID ARAUJO, numa das vezes em que o depoente estava pendurado no “pau de arara”, ficou de pé no peito do depoente. A tortura consistia em choques elétricos, espancamentos, e uma espécie de afogamento, feito com um pano molhado em água. Tudo isso era feito quando o depoente estava no “pau de arara”. Que ficava despido. Que era espancado com um pedaço de pau. Como sequela desse tipo de espancamento teve uma vértebra dorsal quebrada. DAVID DOS SANTOS ARAUJO era um dos agentes que, com certeza, o agrediu com o “pedaço de pau”. Que foi preso de manhã, cerca de 10 horas, e torturado o dia todo.