Pauta histórica de especialistas e organizações populares do campo progressista, o combate às revistas íntimas em presídios voltou à tona no país. O tema é julgado atualmente pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), que avalia um recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS). A promotoria gaúcha questiona uma decisão anterior do Tribunal de Justiça do Estado que considerou como ilegal uma prova obtida por meio desse tipo de prática.
Ao iniciar a avaliação do caso, na quinta-feira (29), o STF teve três votos a um pelo fim da revista íntima. Os ministros Rosa Weber, Luís Roberto Barros e Edson Fachin votaram pela ilegalidade da medida, sendo este último o relator do caso. Eles concordaram no entendimento de que a prática é vexatória e fere garantias constitucionais.
Já o ministro Alexandre de Moraes abriu uma divergência: ele considerou que a prática é humilhante, mas defendeu que ela pode ser adotada em situações excepcionais. Para Moraes, a prática deve ser permitida quando houver autorização do visitante, sendo conduzida por um médico quando se tratar de exames mais invasivos, como averiguações na vagina e no ânus. Eventuais excessos acarretariam a responsabilização do agente público ou médico envolvido, na visão do magistrado.
O debate ainda não tem um fechamento por parte do STF, que suspendeu o julgamento do caso por conta de um pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Agora, organizações civis que acompanham a discussão intensificam o coro pela ilegalidade das revistas íntimas para cobrar um desfecho favorável à garantia de direitos dos visitantes de presidiários.
A advogada Carolina Diniz, do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, questiona a defesa de Moraes pela instituição de situações excepcionais para a prática.
Ela aponta que há lugares onde a visita íntima é aplicada em 100% das pessoas que vão a cadeias para rever parentes. É o caso do Distrito Federal. Em informações prestadas ao STF e ao Conectas, as administrações penitenciárias locais afirmaram que não só se utilizam de escâneres como também adotam a prática das revistas em todo o universo de visitantes.
“Se o Supremo entender isso como medida excepcional, na prática, ele vai estar endossando essa medida como regra, porque sempre vai ter uma excepcionalidade. E excepcionalidade é achar que essas pessoas são suspeitas simplesmente por quererem cuidar e estabelecer um vínculo com seus entes familiares. E você está aceitando a tortura também como uma excepcionalidade”, argumenta a advogada, reforçando o discurso de que a prática é inconstitucional.
Mulheres
Em seu voto, o ministro Barroso chegou a afirmar que, caso se tratasse de homens, a revista íntima já não seria mais aceita no país. O discurso é endossado pela pesquisadora Raíssa Maia, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que integra a Rede de Justiça Criminal.
Ela lembra que as mulheres representam 75% dos visitantes em cadeias, com destaque para negras e pobres, o perfil mais presente em familiares de detentos. Em comparação, homens são apenas 8% desse público, menos da metade do percentual de crianças, que constituem 17% do contingente. Os dados constam em um parecer produzido pela Rede a partir de dados oficiais obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
“A gente entende que ela [a revista] é uma forma de estupro institucional, porque permite que agentes do Estado violem, toquem e mexam nos corpos das mulheres, de uma forma considerada aceita, com a naturalização dessa prática. Isso acontece porque o machismo permite a objetificação do corpo feminino”, analisa a pesquisadora.
Escâner
Ao se manifestar durante a sessão de análise do caso, o presidente do STF, Luiz Fux, sugeriu que o plenário modulasse a decisão final do julgamento no sentido de liberar a revista íntima em situações excepcionais, conforme defendido por Moraes. Fux afirmou ainda que “não se pode ignorar a realidade de que apenas 561 estabelecimentos prisionais do país tem escâner corporal”.
O uso dos equipamentos também foi destaque no voto do ministro Barroso, que sugeriu que o Supremo estabeleça prazo de um ano para que os estados adquiram escâneres para todos os presídios. A medida foi proposta também pela Procuradoria-Geral da República (PGR), mas é contestada pelos especialistas.
Raíssa Maia aponta que a Rede tem relatos de diferentes organizações que reúnem familiares de detentos e denunciam frequentemente que as revistas continuam sendo aplicadas mesmo quando há escâner na unidade prisional.
“Por isso, se colocar o escâner, na prática, isso não significa o fim da revista vexatória. Outros caminhos precisam ser encontrados que não o da revista. O que a gente precisa é de um entendimento pacificado de que ela não pode ser aceita como meio de obtenção de prova porque é degradante e por isso não pode ser uma opção”, defende a pesquisadora, ressaltando ainda a importância de se garantir a presunção de inocência dos visitantes de detentos.
Estatísticas
Os profissionais que acompanham o tema chamam a atenção para as estatísticas que tratam de ilicitudes envolvendo presos e visitantes. Uma pesquisa feita pela Rede de Justiça Criminal em unidades de São Paulo constatou que o percentual geral de detentos acusados de faltas administrativas relacionadas à apreensão de objetos ilícitos é de 2,61%. No caso de visitantes, a proporção é ainda mais baixa, de apenas 0,03%.
Além disso, em uma análise mais discriminada, o relatório mostra que somente 0,02% dos visitantes tentaram entrar em prisões portando celular. O mesmo percentual foi identificado para pessoas que tentaram adentrar esses locais com droga, enquanto nenhum tipo de arma foi encontrado com visitantes no período pesquisado, que compreendeu os meses de fevereiro, março e abril dos anos de 2010 a 2013.
“Concluiu-se, portanto, que a identificação de armas, drogas e celulares – e a consequente apuração de responsabilidade por essa conduta – dentro das unidades prisionais era uma situação de extrema excepcionalidade e que, concretamente, não poderia sustentar medidas tão gravosas de restrição a direitos”, afirma a entidade, no documento.
Abusos
A prática recorrente de abusos durante as visitas é outro aspecto de realce. A advogada Carolina Diniz assinala que são comuns, em São Paulo, relatos de mulheres que, ao serem submetidas a revistas, são vítimas de abusos por parte dos agentes responsáveis pelo procedimento.
“Em alguns casos, as mulheres chegam a ser sequestradas, são obrigadas a irem até um hospital e passam horas lá fazendo exames extremamente invasivos para, muitas vezes, isso não dá em nada. O Estado de São Paulo, inclusive, já chegou a ser condenado a pagar indenizações para mulheres por contas essa prática. Então, não é só um escâner que vai resolver a questão”.
Expectativa
Ainda sem previsão de data para retornar à pauta do plenário após o pedido de vista de Toffoli, o tema segue em meio a uma interrogação e esse soma às expectativas da sociedade civil diante da postura do Poder Judiciário.
“A gente espera que haja uma mudança de mentalidade. O STF tem que reconhecer a revista íntima como inconstitucional, sem deixar margens pra abusos, interpretações e casos de excepcionalidade”, finaliza a advogada Carolina Diniz