DURANTE O GOVERNO de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, no início dos anos 1990, coube à socióloga Julita Lemgruber a atribuição de administrar todo o sistema penitenciário do estado. Cientista social que havia pesquisado no mestrado as relações entre as detentas de um presídio feminino, Julita lembra da sensação de ser tratada como uma extraterrestre nesse mundo no qual desembarcou.
Ela não tinha o perfil que se esperava para o cargo, geralmente ocupado por homens comandantes de forças de segurança ou gestores bons de enxugar custos em planilhas de cálculo. “Lembro que eu preparava apresentações e falava sobre temas como o impacto na autoestima que um detento sofre, e as pessoas pareciam nem ouvir o que eu dizia. Não davam a mínima.”
“Até que um dia eu aprendi uma lição”, diz ela.
Julita tinha tomado conhecimento de um caso de uma mulher que havia furtado dois pacotes de fraldas descartáveis numa farmácia do Rio de Janeiro e que, como consequência, passou dois anos presa. “Dois anos na cadeia custavam ao estado 20 mil reais nos anos 90”, ou algo em torno de 75 mil reais em dinheiro de hoje (atualizado pelo IPCA, o índice nacional de preços ao consumidor). “Quando comecei a contar essa história, percebi que as pessoas se incomodavam muito.” Devia haver jeito melhor de lidar com o furto de fraldas do que gastando duas mil vezes o preço do item furtado para punir alguém. Os interlocutores de Julita podiam não dar a mínima para a autoestima de uma presa, mas o desperdício de dinheiro dos impostos numa intervenção extrema que dificilmente teria algum impacto positivo importante não fazia sentido para ninguém.
Desse dia em diante, Julita comprou pacotes de fralda em vários lugares do mundo, para ilustrar suas palestras e reuniões. Ela havia aprendido que o caminho para atrair a atenção da sociedade para o nosso horripilante sistema prisional não seria pela defesa da dignidade humana, tão difícil de fazer num país tão traumatizado pela violência. Seria pelo debate a respeito de como usar o orçamento público de maneira racional.
Começou com esse episódio um interesse que deve resultar no final do ano que vem no primeiro estudo abrangente para calcular o custo total de uma política pública essencial para entender o Brasil, suas agruras na segurança pública e seu caos social generalizado: a guerra contra as drogas. Nesta segunda-feira, 29 de março, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, o Cesec, dirigido por Julita, publica o relatório “Tiro no Pé”, que contém a primeira parte de um esforço para entender quanto custa para o estado brasileiro criminalizar o uso e o comércio de certas drogas, de acordo com o conjunto de políticas que se convencionou chamar de “guerra contra as drogas”.
Só o começo
O relatório divulgado é um primeiro passo de um grande esforço. A rede de pesquisadores comandada por Julita por enquanto se limitou a dois estados, São Paulo e Rio, e focou apenas nos custos diretos da guerra às drogas nos orçamentos dos sistemas de Justiça – o quanto os governos dos palácios dos Bandeirantes e das Laranjeiras gastam com polícia, justiça e detenção para manter as drogas proibidas. O resultado, embora astronômico, é assumidamente subestimado: 5,2 bilhões de reais ao longo de um ano (no caso, 2017, porque os pesquisadores consideraram que os anos que se seguiram, a começar por 2018, quando houve uma intervenção militar na segurança pública carioca, foram todos atípicos demais para servirem de referência).
São Paulo, se dedicasse o dinheiro a outro fim, poderia ter mantido 43 mil novos alunos na USP, o que aumentaria em mais de 70% a quantidade de pessoas caminhando na direção de um diploma superior na instituição. O Rio poderia construir 121 novas escolas com o que gastou com a guerra – ou, se preferisse, vacinar sua população inteira contra a covid-19.
O valor inclui apenas as ações de instituições como as polícias, o Ministério Público, as defensorias, os tribunais, os sistemas prisional e socioeducacional, que os pesquisadores puderam atribuir sem sombra de dúvidas à guerra às drogas. “Não quisemos incluir nada que fosse apenas estimado, para não fragilizar nossas conclusões” diz Julita.
Isso complicou bastante a coleta de dados, porque os orçamentos da guerra às drogas não são transparentes: grande parte deles está escondido em ações incorporadas às rotinas dos órgãos. Quase nada dos dados usados na pesquisa estava público. Os pesquisadores só tiveram acesso a eles depois de submeter 122 pedidos com base na Lei de Acesso à Informação, a LAI.
Eles também entrevistaram 151 policiais militares dos dois estados e pediram a eles que estimassem o quanto do seu tempo era dedicado ao combate contra as drogas. Os PMs entrevistados calcularam que as drogas tomam algo entre um terço (em São Paulo) e metade (no Rio) dos seus dias de trabalho. Isso é lamentável se se considera que a grande maioria das pessoas detidas por causa de drogas não tem envolvimento com organizações criminosas nem cometeu crime violento – e que, uma vez presas, elas têm grandes chances de se incorporarem à lucrativa corporação do tráfico. Enquanto isso, temos sido incapazes de evitar e punir crimes mais sérios. No Rio de Janeiro, por exemplo, apenas 11% dos homicídios são solucionados. Difícil esperar algo diferente se a polícia passa metade do seu tempo enxugando gelo.
A pesquisa agora irá continuar contabilizando outros custos da guerra às drogas: tanto gastos diretos no orçamento público quanto impactos que são transferidos à sociedade. Na próxima etapa, os pesquisadores vão se debruçar sobre a educação pública, buscando entender como essa política pública impacta nos indicadores. “Nessa área, temos acesso a bancos de dados muito mais completos, de cada escola”, diz Julita. Com isso, eles pretendem tentar quantificar o custo para a sociedade da presença ostensiva da polícia junto a escolas, da rotina angustiante de trocas de tiros – o quanto se perde de aulas, o quanto se perde de rendimento, de aprendizagem. “E aí calcular quanto isso tudo custa.”
O mesmo será feito em seguida com a saúde pública, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, quando a pandemia permitir, já que essa pesquisa demandará entrevistas de porta em porta. O plano é computar tudo o que for quantificável e traduzível em termos financeiros. “Não estamos querendo ignorar aquilo que é imensurável, inclusive a dor e o sofrimento que essa política causa, difíceis de traduzir num valor em dinheiro”, diz Julita. “Mas calcular os custos é fundamental para definir prioridades de política pública. Não temos dinheiro sobrando. Quanto queremos gastar com o quê?”, pergunta Julita.
O que vai ficando evidente é que a guerra contra as drogas é uma política enormemente dispendiosa dos nossos escassos recursos, como se não bastasse o fato que ela não traz resultado positivo algum. Desde que os gastos com o combate às drogas começaram a escalar, nos anos 1980s, as margens de lucro do tráfico e a violência associada a ele aumentaram exponencialmente.
Muita gente defende a permanência dessa política por se opor moralmente ao uso de drogas. Ok ter convicções morais. Mas será que o Brasil tem dinheiro sobrando para isso?