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MPF segue em busca de punição para agentes da ditadura

Jun 14, 2021

Por Vitor Nuzzi, na RBA                                                                                                                         

 

Apesar de condenado internacionalmente, o Brasil segue resistindo a levar adiante investigações sobre casos de violações de direitos humanos durante a ditadura. Punições, então, parecem fora de cogitação. O Ministério Público Federal está prestes a completar 10 anos de denúncias por meio de ações criminais contra agentes do Estado. Mas essas ações seguem esbarrando no Judiciário sob o mesmo argumento, questionado juridicamente: a Lei de Anistia.

O site https://justicadetransicao.mpf.mp.br/ lista 49 casos de ações em Varas federais de seis estados, principalmente São Paulo. Os denunciados chegam a 60, com alguns nomes se destacando pela quantidade de citações, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do atual presidente, e Sebastião Curió, que inclusive visitou o Palácio do Planalto na atual gestão. O que evidencia a simpatia do atual governo por agentes formalmente acusados de crimes cometidos durante a ditadura.

Justiça de Transição

Segundo a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, desde que o Ministério Público constituiu um grupo de Justiça de Transição, a partir de 2010, foram instaurados mais de uma centena de inquéritos. Nem todos viraram denúncias, lembra, pela dificuldade, em muitos casos, de se conseguir provas. “Infelizmente, o tempo dificulta a instrução desses inquéritos”, diz a procuradora, em entrevista ao podcast do MPF em São Paulo. Mas há também a questão política, que atravessou décadas e governos e se mostra uma barreira difícil de superar.

“Essa resistência não é só do Poder Judiciário. Acho que existem várias situações que nos levam a esse quadro. Por exemplo, a ditadura no Brasil foi muito longeva, teve um apoio muito forte, da classe média, do empresariado, da mídia”, diz Eugênia, que presidiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Atualmente, coordena o Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC).

Transição imperceptível

Ela acredita que a ditadura fez suas próprias “escolas sem partido”, desinformando a população sobre o que acontecia e aconteceu naquele período. “A gente não tinha informação nenhuma a respeito. Já tinham conseguido formar uma geração sem nenhuma noção do que acontecia. A transição para a democracia foi quase imperceptível.”

A procuradora contesta o entendimento, comum no Judiciário, que a Lei da Anistia, aprovada em 1979, impede a punição a agentes do Estado. “Não foi um pacto com o outro lado, foi um pacto entre os apoiadores da ditadura. Não levantar o passado, não revelar o destino dos corpos. Então, o Poder Judiciário seguiu alinhado com isso, o MP também. Esse pacto se deu em cima de corpos insepultos. Quando nós começamos a falar em responsabilização, éramos um grupo muito pequeno no MPF, mas pelo menos o tema começou a ganhar corpo.”

Anistia: ações na gaveta

Para Eugênia, a aplicação automática da lei de 1979 é resultado “de uma interpretação que não se sustenta juridicamente, não está escrita na Lei de Anistia”. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a lei, em ação que segue pendente, devido a recursos. Há ainda outras ações relativas ao tema. Todas na gaveta do relator, ministro Luiz Fux, atual presidente da Corte. “O Supremo entende pela constitucionalidade da Lei de Anistia e pela sua aplicação aos agentes da ditadura, esse foi o grande equivoco”, avalia a procuradora.

No mesmo ano do julgamento do STF, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por não investigar o caso Araguaia. Pela Constituição, o Brasil deve se submeter aos tribunais internacionais na questão dos direitos humanos. “Então, o Supremo pode até declarar que a Lei de Anistia é constitucional, vale para os agentes, mas não para graves violações de direitos humanos”, observa Eugênia, observando que a sentença da Corte Interamericana é auto-aplicável. “Ninguém teve coragem de romper com essa ideia de que a LA perdoou tudo”, lamenta a procuradora.

Denúncia contra torturador

Em pelo menos um caso, a decisão judicial foi reformada. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), no Rio de Janeiro, ratificou denúncia contra o sargento Antonio Waneir Pinheiro de Lima, o “Camarão”, réu em acusações de sequestro, cárcere privado e estupro de Inês Etienne Romeu, em 1971. Sobrevivente da chamada “Casa da Morte”, em Petrópolis, ela morreu em 2015.

No ano passado, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu alento aos defensores de punições aos crimes cometidos na ditadura. O tribunal determinou que a segunda instância volte a analisar uma ação por violação de direitos humanos por três agentes do Estado. Um dos ministros apontou jurisprudência no STJ sobre a imprescritibilidade de ações civis fundamentadas em “atos de perseguição política, tortura, homicídio e outras violações de direitos fundamentais”. Para Eugênia Gonzaga, “o caminho cível está aberto”.

Condenações internacionais

As investigações do MPF levaram a várias ações emblemáticas, como a do caso Riocentro, com seis denunciados. Ou a relativa a Frei Tito, que a Justiça barrou. Cinco agentes também foram denunciados pela tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva (confira acima a lista completa de ações propostas pelo Ministério Público). Se internamente as denúncias encontram dificuldades para prosseguir, o Brasil voltou a ser condenado pela Corte Interamericana em 2018, desta vez por não apurar e punir responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.

“O Brasil se vinculou à Corte Interamericana porque quis”, lembra Eugênia Gonzaga, sobre a obrigação de o país cumprir as sentenças. “Se não quer cumprir, o mais correto seria se desvincular formalmente.” Mas ela observa que isso poderia levar o Brasil a sofrer sanções de caráter geopolítico.

Três comissões levaram a avanços

Apesar das dificuldades e da falta de ações dos governos, a procuradora identifica avanços, como a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, em 1995, e da Comissão de Anistia, em 2002. Sob o comando de Paulo Abrão, por exemplo, a Comissão de Anistia passou a agir no sentido de buscar não só reparação financeira, mas política, com caravanas realizadas por todo o país e apresentação de pedidos formais de desculpas do Estado brasileiro. Depois veio a Comissão Nacional da Verdade, que apresentou seu relatório final em 2014.

As dificuldades aumentaram no período recente, com a eleição do atual presidente, defensor da ditadura e favorável à tortura. Ao ver na impunidade o “cerne” da violência do Estado, a procuradora – ela mesmo objeto de represália do governo – vê um retrocesso difícil de mensurar. “O dano que esse goerno está gerando com essa postura de apoio ao genocídio, à morte, à milícia, a coisa de passar boiada, não sei quanto tempo o Brasil vai demorar pra assimilar, pra reparar. (…) O duro é que o Brasil não prezou a democracia o suficiente para rebater essas questões quando elas começaram a surgir, lá atrás.”

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