Antes, havia a vegetação da Chapada do Ibiapaba, no Ceará, e a miséria. Aos poucos os miseráveis foram se juntando e há 27 anos o povoado foi elevado à condição de município de Croatá. Foi apenas para permitir aos políticos se apropriarem de um naco do Fundo de Participação dos Municípios e criar cargos remunerados para prefeito e vereadores.
A cidade efetivamente começou a nascer de doze anos para cá. O salário mínimo melhorou e, junto com o Bolsa Familia, ajudou a irrigar as famílias locais, o Luz para Todos a inseri-los na civilização.
A nova renda criou um comércio local, ainda que acanhado. E migalhas do orçamento, plantadas em terra inóspita, permitiram que as pessoas fossem saindo das brumas da fome e da miséria e, no meio delas, nascesse o empreendedorismo. Não o empreendedorismo dos grandões locais mamando nas tetas do FPM, nem dos jovens bem concebidos e bem formados da capital, empreendendo em aplicativos para smartphones. Mas na pessoa de um funcionário municipal, o guarda Hélio. Ou melhor, o Maestro Hélio, com M maiúsculo.
Ele não lê partituras. Mas foi dotado de um talento especial que lhe permite conceber de ouvido arranjos complexos e descobrir de orelhada o talento oculto em alguns daqueles filhos da miséria e da seca. E, principalmente, da vocação de prepará-los para o mundo.
No começo, juntou algumas crianças tocando pífaro. Montou os arranjos, organizou os moleques para as primeiras apresentações. Depois, foi ampliando o grupo e descobriu as Leis de Incentivo à Cultura, estadual e federal, porque no município, mesmo, nada conseguiu. O prefeito boicota como pode, porque quer o apoio político da orquestra e o guarda Hélio não é adepto do prefeiturismo de coalizão.
O prefeito oferece bolsas para os meninos que aceitem desistir da música e às famílias que aceitem matar os sonhos musicais dos seus filhos. Mas os meninos não cederam e as famílias resistiram, porque os cidadãos locais livraram-se do jugo do cabresto com seus cartões do INSS e do Bolsa Família.
Em outros tempos, seriam meninos condenados à miséria. Em lugar das flautas, clarinetas e saxofones, provavelmente enxadas, ancinhos, picaretas, e, como música, apenas a incelença com com que as carpideiras enterram os locais.
A banda foi aumentando. Conseguiu o patrocínio de uma empresa de ônibus e de outra empresa regional. O guarda Hélio preparou os arranjos. E foi assim que nasceu a Orquestra Sinfônica Estrelas da Serra.
Na sexta-feira passada, à noite, no centro de convenções de Ubajara, os meninos do Maestro Hélio abriram a convenção do CDL (Clube dos Dirigentes Lojistas) estadual para um público de 1.500 lojistas.
Só forró pé de serra? Que nada. Também Michael Jackson, Legião Urbana, um pout pourri de artistas cearenses. Porque a luz elétrica, levada pelo Luz para Todos, permitindo aos meninos de Croatá o acesso à Internet, conferiu-lhes o sentimento do mundo.
Vestidos a caráter, os meninos de terno e gravata, cabelos penteados, as meninas de longo, por sua história, pelo modo compenetrado com que tocam, pelo entusiasmo que nasce da batuta do maestro e se espalha pelos 70 instrumentistas, o som que brota da Sinfônica Estrelas da Serra encarna o sentido civilizador da música, como nenhuma outra Sinfônica do mundo.
Ao final, o maestro Hélio agradece os aplausos. São 70 meninos. Na região, os talentos passam de 200. E há uma singularidade: os mais talentosos estão entre os mais necessitados. É como se Deus os colocasse na faixa de Gaza da miséria nordestina, lhes entregasse o dom da música e a recomendação: vai, meu filho, que o seu dom o salve da morte breve e o guie pelo mundo.
O maestro Helio solicita então que os bens aquinhoados cidadãos do encontro ajudem a bancar a bolsa para os alunos que não podem pagar: R$ 10,00 mensais por aluno. E, no telão do encontro, coloca o e-mail, o site e a conta corrente para as contribuições.
Os senhores de preto
A mil e tantos quilômetros dali, senhores vetustos se reúnem na calada da noite para o grande pacto nacional de governabilidade.
Em um apartamento amplo de Higienópolis, o velho ex-presidente de alma seca como o agreste cearense comanda o regabofe e ensaia sua proposta de pacto.
A velha companheira partiu há tempos. Era ela quem cuidava diariamente de irrigar sua alma com algumas gotas de brasilidade, com o sentimento de solidariedade, com a generosidade que deveria ser parte integrante dos que governam.
Mas o solo era seco e árido para florescer, e mais árido e seco se tornou depois que ela partiu. Nos últimos anos sua voz sibilina como a de um cortesão florentino, cortante e cruel como a de uma harpia grega, ajudou a disseminar o ódio na sua comunidade.
Agora, vale-se da fragilidade de uma presidente perdida para propor o pacto saneador, o grande acordo nacional que permitirá aos homens de bens o sono tranquilo.
Não se imagine um pacto a favor de políticas civilizatórias, buscando níveis maiores de metas de IDHs, das metas do milênio, ou da possibilidade de fazer brotar outras Estrelas da Serra pelo país afora.
Para aqueles nobres senhores, a miséria não tem rosto. O pacto não visará apenas equilibrar o orçamento deste ano. Seu objetivo é cortar de vez esses desperdícios que ousam mudar a ordem natural das coisas, plantar músicos onde deveriam nascer cactus, permitir o estudo para quem nasceu para o analfabetismo, abrir as portas do futuro para quem, do passado, não consegue desbravar sequer a própria genealogia.
Generosos, os editores das redes de TV pouparam-nos da visão dos meninos de Croatá ou das explicações sobre o fenômeno que faz nascer flores no deserto: seria insuportável para os homens de negro admitir que o milagre da multiplicação de talentos nasceu da melhoria do salário mínimo, dos gastos do Bolsa Família, do Luz Para Todos.
No seu salão, o ancião frio pensará nas imposições que fará para impor o pacto. A paz nacional será alcançada desde que entregue, na bandeja do orçamento não apenas os sonhos musicais, mas a própria segurança alimentar de milhões de crianças, plantadas em terra inóspita e que um dia ainda poderiam florescer.
A mil quilômetros de distância, enclausurada em seu Palácio de Cristal, perdida entre seus pares, a presidente avalia se cede ou não. O país inteiro na expectativa: a presidente vai admitir seus erros? não vai admitir seus erros?
Não basta dizer: é possível que eu tenha errado. A prova do pudim, a senha que tirará a presidente das portas do cadafalso e lhe permitirá respirar é declarar: as políticas sociais serão cortadas. Então, os bens pensantes a saudarão e a mídia a perdoará dos erros passados. E dirão, com a sabedoria dos filósofos medievais, que a terra é plana e Deus ilumina os que trilham o caminho dos bens.
E, nos lares aquecidos do sudeste, famílias solidárias mostrarão que têm sentimentos, contemplando com olhos umedecidos a imagem do menino sirio que uma onda do mar depositou na praia, como que dormindo. E não verão, por distantes, as estrelas que se apagarão na serra.