Mário Pereira é guardião do monumento desde 1997 - ARQUIVO PESSOAL/MÁRIO PEREIRA
"O soldado desconhecido que fica ali no monumento vai se revoltar, meu pai, um pracinha que está no cemitério ali do lado, vai se revoltar muito, se revirar na tumba. Infelizmente, temos a ideologia contrária vindo homenagear quem combateu e derrotou o nazifascismo."
É assim que Mario Pereira, guardião por décadas do monumento em homenagem aos soldados brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial, reagiu à visita nesta terça-feira (2/11) do presidente Jair Bolsonaro e do senador italiano Matteo Salvini ao local em Pistoia, cidade que fica 300 km ao norte de Roma.
Para Pereira, funcionário da embaixada brasileira, o presidente do Brasil só está preocupado em fazer campanha política na Itália e não parece natural que Bolsonaro e Salvini visitem o monumento "visto o perfil ideológico dos dois", "uma ideologia muito parecida com o nazifascismo".
Mario é filho de um "amor de guerra" entre Giuliana Menichini, italiana de Pistoia, e Miguel Pereira, soldado gaúcho natural de Passo Fundo. Eles se conheceram por acaso quando ela abriu a janela de seu quarto, se deparou um caminhão e ouviu um "buongiorno, signorina". Acabaram se casando anos depois
Miguel se tornou único pracinha que decidiu permanecer na Itália depois da guerra e acabou sendo responsável pelo Monumento Votivo Brasileiro de 1966 a 2003, ano de sua morte. Foi quando então Mario, que ajudava o pai desde 1997, assumiu o posto de guardião do local, mantido com recursos do governo brasileiro e do próprio bolso dele (para custear palestras no Brasil sobre os pracinhas).
"Os brasileiros não davam... Eles dividiam. Se tinham café, levavam café em casa. Se tinham chocolate, levavam chocolate em casa, o mingau, o pão branco. Era uma divisão, o que era muito diferente (dos outros soldados). Era como confraternizar com os brasileiros; eles se integraram logo à família", relembrou Giuliana Menichini a uma publicação do Exército brasileiro.
Para Mario Pereira, o Monumento Votivo marca esse lado humano das relações entre os soldados brasileiros e os cidadãos italianos, algo que ele diz comover até hoje a população local. "O lado humano do monumento é que, no meio drama da maior guerra do mundo, a postura e o caráter dos soldados brasileiros se destacaram mais do que própria força militar contra os alemães. Eles conseguiram trazer esperança e ajuda para uma população fragilizada por 20 anos de fascismo e cinco anos de guerra, e isso é reconhecido por mais de 50 monumentos espalhados pela Itália."
O mais importante deles é o Monumento Votivo Brasileiro, construído em 1966 no mesmo lugar em que havia um cemitério para os soldados brasileiros mortos em combate até 1960, ano em que eles foram levados para o Brasil. "Este cemitério tão puro / é um dormitório de meninos: / e as mães de muito longe chamam, / entre as mil cortinas do tempo, / cheias de lágrimas, seus filhos. / (...) E as mães esperam que ainda acordem, / como foram, fortes e belos, / depois deste rude exercício, / desta metralha e deste sangue", escreveu a poeta Cecília Meireles.
Em audiência no Senado brasileiro em 2019, Vinicius Mariano de Carvalho, professor e pesquisador do Brazil Institute do King's College, citou a expressão "diplomacia de memória" para ressaltar a importância do monumento em Pistoia. Segundo ele, o local é capaz de fazer lembrar que "em momentos de dificuldade as nações amigas podem contar umas com as outras".
Segundo dados oficiais, 20.573 pracinhas foram enviados para lutar na Itália e 465 morreram em batalha. Do total, 16 nunca foram identificados, entre eles o Soldado Desconhecido, que continua enterrado em Pistoia e garante que ali continue sendo considerado um lugar sagrado. Ali há também um fogo eterno, a lista dos brasileiros mortos e das batalhas na Itália e um altar em formato de véu.