O portal The Intercept acessou documento oficial do Exército que descreve “simulação feita em 2020 [que] revela como a tropa de elite do Exército está sendo treinada para combater a esquerda e movimentos sociais”.O exercício relatado – “Operação Mantiqueira” – não é um treinamento de defesa do país ante agressores externos.
É, ao contrário disso, uma atividade de adestramento ideológico para combater “inimigos internos” – movimentos sociais, organizações e partidos de esquerda.
Se dito documento [aqui] não simulasse situações que aparecem no texto como ambientadas nos anos 2012 a 2020, poderia ser confundido com um manual doutrinário da década de 1935 do século passado.
Mostra um Exército anacrônico, aprisionado à lógica embolorada dos longínquos tempos da guerra fria e impregnado ideologicamente pelo anticomunismo que, nos dias atuais, corresponde genericamente ao antipetismo e ao antilulismo.
O texto incute reacionarismo, conservadorismo e sectarismo nas tropas e reforça uma auto-imagem delirante do papel das Forças Armadas na tutela da democracia.
Para simular o exercício, o Exército criou uma fábula disparatada em que um partido marxista institucionalizado na vida do país tem um braço armado na guerrilha.
Escolheram descrições, siglas e denominações para insinuar alusão ao PT, ao MST e a parlamentares de esquerda.
O instrutivo sugere o papel de “salvação nacional” e de tutela que o Exército “está chamado” a cumprir porque “até o presente as autoridades não percebem o ELPB [sigla de Exército de Libertação do Povo Brasaniano] como ameaça à democracia” [sic].
O roteiro alega, além disso, que “uma ala mais tendenciosa da imprensa vem acompanhando o ELPB de forma velada, com notícias que buscam divulgar o caráter ‘democrático e de liberdade’ que o ELPB ‘defende’”.
O professor Juliano Cortinhas, da UnB, ouvido pela reportagem do Intercept, opina que “uma operação como essa, de Forças Especiais, seria completamente ilegal. Não há nenhum respaldo legal ou constitucional” e não se refere “a situações plausíveis com que os militares podem eventualmente se deparar”.
Para o professor da UFSCar João Roberto Martins Filho, também citado na reportagem, “não há nenhuma ameaça à democracia partindo de organizações de esquerda, mas sim das de direita, que têm ameaçado instituições democráticas e [estão] sendo investigadas em inquéritos do Supremo Tribunal Federal”.
Embora no cabeçalho e no rodapé do documento conste a classificação de “reservado”, por algum motivo o mesmo vazou.
A potencial vitória eleitoral do ex-presidente Lula em 2022 não é digerida pelo partido dos generais, que moverá montanhas para sabotar sua eleição, sua posse e seu governo.
Lula é um entrave à continuidade do projeto de poder da cúpula militar; é o único com chances de mandar os militares de volta aos quartéis.
Como confessou o general conspirador Villas Bôas no livro organizado por Celso Castro [Conversando com o comandante], “me preocupa uma eventual volta ao poder pela esquerda e que ocorra o que disse Tayreland sobre os Bourbon: ‘Não aprendem e também não esquecem’” [pág. 158].
A histeria anticomunista e reacionária que vem de quase um século anima até hoje a atuação partidária das Forças Armadas.
Que o diga não sem hipocrisia Villas Bôas: “Mais uma vez, a esquerda empurrou os militares para uma postura anticomunista. Cometeu o erro crasso de provocar fraturas, tanto verticais quanto horizontais, no estamento militar” [sic] [pág. 161].
Para “justificar” a interferência política inconstitucional, o general conspirador evoca “o fato de a esquerda, com pautas esvaziadas desde a queda do comunismo, terem aderido ao ‘politicamente correto’”.
A “Operação Mantiqueira” atesta que o Exército desperdiça milhões de reais numa preparação totalmente inútil para o desempenho da função profissional e constitucional de defesa do Brasil.
Ao invés disso, treina e se prepara para guerrear militarmente contra os próprios brasileiros, aqueles considerados inimigos políticos internos.
A sociedade brasileira está chamada a enfrentar com absoluta urgência a questão militar.
O treinamento de guerra do Exército contra “inimigos internos” cobra reação urgente do Congresso, do MPF e do judiciário.
Aceitar o insulamento institucional das Forças Armadas poderá ser fatal.
Eles têm justiça própria, previdência própria, escolas próprias, currículos próprios, regulamentos próprios, leis próprias, ética própria, pensões vitalícias para filhas, privilégios e mais regalias intrínsecas à vida que levam – à parte e acima do controle da sociedade civil.
Os militares só formalmente estão subordinados ao comando do poder civil.
Eles não se submetem a controles públicos, gerenciam com obscuridade [e corrupção] um orçamento anual de mais de R$ 100 bilhões e pior de tudo: atuam como facção partidária e milícia armada que corrompe a democracia, afronta o Estado de Direito e é adestrado para aniquilar segmentos do próprio povo brasileiro..