A advogada Maria Goretti reproduziu no Facebook um recorte do Zero Hora de pouco depois do golpe de 1964, quando o diário gaúcho ainda era propriedade de Ary de Carvalho — em 1970, a família Sirotski adquiriu o controle completo da empresa que deu origem a seu império no Sul, a RBS.
A RBS é aquela que foi pega com a boca na botija na Operação Zelotes, acusada de fraudar processos tributários para sonegar impostos. Valor total do rombo que teria sido causado em 74 processos de várias empresas: R$ 21 bilhões! Trata-se de corrupção do mesmo quilate da qual são acusadas as empreiteiras na Operação Lava Jato.
A RBS fica sob as asas da nave-mãe, a Globo, multada pela Receita Federal em mais de R$ 600 milhões por uma operação envolvendo uma empresa de fachada, a Empire, nas ilhas Virgens Britânicas.
Segundo o auditor da Receita, a Globo fez um “investimento” na Empire e usou o capital para comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo, com isso deixando de pagar os impostos devidos no Brasil.
São estes aí — RBS e Globo — que clamam contra novos impostos, especialmente — Deus me livre! — sobre os ricos. Propugnam, ao invés disso, pelo corte dos programas sociais.
Voltemos ao recorte do Zero Hora.
Segundo a lógica do jornal, os comunistas promoviam a inflação galopante no governo de João Goulart com o objetivo de “levar você ao desespero e à adesão às violências do comunismo”.
Que plano diabólico!
Por essa lógica, vai ver que José Sarney, quando ocupava o Planalto com inflação de 1.000% ao mês, recebia ouro de Moscou sem que a gente soubesse.
O fato é que João Goulart caiu em 1964 por propor as reformas de base. Ponto. Eram reformas tímidas. Porém, além de ameaçar os latifundiários locais, contradiziam o que o capitalismo precisava em países periféricos: salários baixos, mão-de-obra sob controle e remessa de lucros à vontade, das empresas multinacionais a seus países de origem.
Goulart não era comunista, longe disso. Na tradição de Getúlio Vargas, era um reformista, na mesma linha de Lula e Dilma. No caso dos petistas, “reformismo fraco”, nas palavras do economista Marcio Pochmann: longe de tocar em privilégios num dos países mais desiguais do planeta, o reformismo do PT permitiu aos de cima lucros e benesses extraordinárias do Estado. Ou seja, muitos daqueles que hoje denunciam Dilma por “destruir a economia” tiraram proveito, via desonerações, da “destruição”.
Os jovens — que obviamente não viveram sob Vargas, Goulart ou sob a ditadura militar — têm grande dificuldade de compreender este fio condutor que liga os trabalhistas e os anti-trabalhistas na política brasileira. É mesmo difícil, a não ser para quem tenha vivido ou lido muito a respeito, identificar a continuidade — cheia de nuances, é óbvio — entre UDN/PSDB e PTB/PT, com o PMDB fazendo o papel de fiel da balança, o PSD.
Mais difícil ainda, por falta de acesso aos arquivos dos jornais e emissoras de rádio e TV da época, saber que sob o “mar de lama” — do qual Getúlio Vargas era acusado por Carlos Lacerda — estavam os verdadeiros alvos dos anti-trabalhistas, da Petrobras à Consolidação das Leis de Trabalho (CLT); sob o “anarcosindicalismo” de João Goulart, tão denunciado na imprensa, com amplo financiamento dos Estados Unidos via IPES, estava o presidente que quando ministro de Vargas ousara propor aumento do miserável salário mínimo em 100%; sob os “maiores escândalos de corrupção da História do Universo”, de Lula e Dilma, se escondem o ódio de classe dos que agora penam para encontrar serviçais domésticos, a turma que rejeita o Bolsa Esmola como “assistencialismo” e vê aturdida a infiltração vermelha — de negros comunistas! — através do Mais Médicos.
Da mesma forma, existe uma linha tênue ligando os que não reproduziram o discurso dos barões da mídia: Samuel Wainer, que com seu jornal Última Hora apoiou Vargas, foi investigado numa CPI e teve seus anunciantes publicamente denunciados; Mário Wallace Simonsen, da TV Excelsior, que noticiou o golpe como golpe — e não Revolução — teve seu império destroçado por concorrentes; e os blogueiros, nos dias de hoje, são igualmente criminalizados, enquanto a Globo embolsa R$ 6,2 bilhões em dinheiro público em 12 anos de governos petistas. É “estado máximo” para os herdeiros de Roberto Marinho e “estado mínimo” para os outros.
Por isso, para os jovens, a leitura de O Quarto Poder, de Paulo Henrique Amorim, é altamente recomendável. Didaticamente, ele demonstra como o golpismo está no DNA dos barões da mídia brasileira desde sempre, afinados exclusivamente com os interesses do capital — especialmente o próprio.
Qual foi a justificativa da Folha de S. Paulo para a quartelada do primeiro de abril de 1964?
PHA reproduz texto do editorial Em defesa da lei.
São claros os termos do manifesto do comandante do II Exército. Não houve rebelião contra lei, mas uma tomada de posição em favor da lei. Na verdade, as Forças Armadas destinaram-se a defender a pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.
Ou seja, aqueles tanques que desceram de Minas para o Rio de Janeiro foram uma ilusão de ótica. Não teve golpe.
Mais de 50 anos se passaram e pouco mudou na Barão de Limeira.
A família Frias, que promoveu, apoiou e lucrou com a ditadura militar, é a mesmíssima que dá um ultimato à presidente eleita pela maioria dos brasileiros, com o sugestivo título de Última Chance.
O que disse Roberto Marinho, o da nave-mãe, em 1964?
A legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem.
Pois é, outro que não viu o golpe! Justo ele, um dos arquitetos da “legalidade” que sucedeu Goulart e resultou em censura e tortura.
Roberto Marinho, o homem que inventou o Operário Padrão, que aparecia com grande destaque recebendo seu prêmio no Jornal Nacional, descrito assim pela pesquisadora Daniela de Campos:
O Concurso Operário Padrão, primeiramente uma iniciativa exclusiva do jornal O Globo, iniciou ainda na década de 1950, circunscrito ao estado do Rio de Janeiro. Na década seguinte, sob a ditadura militar, o Serviço Social da Indústria – SESI alia-se ao jornal para tornar a campanha nacional. Em 1965 firmou-se o acordo definitivo entre o SESI e o Globo para a promoção anual do concurso. Segundo Weinstein (2000), após 1964, o SESI pouco inovou em programas e ações voltadas ao trabalhador. Sua inserção no concurso para premiar um operário modelo foi uma das poucas inovações implantadas após o golpe militar, uma vez que o contexto político favorecia esse tipo de investida. Para a entidade empresarial essa Campanha se configurava num “veículo conveniente para um discurso que enfatizava o esforço individual e a cooperação com o patrão como a chave da ascensão social para os operários” (Weinstein, 2000: 351).
O trabalhador como um “colaborador” dócil, é o resumo do que buscavam contra Vargas, Jango e mais recentemente Lula e Dilma. Aquele mesmo, cujas passeatas hoje “atrapalham o trânsito”.
A campanha do impeachment é contra o que restou de “trabalhismo” no governo Dilma. É para espetar a conta da crise integralmente nas costas do Operário Padrão.
É justamente por isso que, hoje, a mesma mídia que denunciava Vargas não esclarece que a campanha pelo impeachment de um governo eleito pela maioria é patrocinada por Aécio Furnas Neves, Ronaldo Cachoeira Caiado, Agripino Detran Maia, Eduardo Lava Jato Cunha e Aloysio 200 mil em cash Nunes, dentre outros.
Afinal, estão todos — inclusive os sonegadores da Globo e da RBS — contra o “mar de lama” e em defesa do Operário Padrão. Ontem, hoje e sempre.