Foto: Alan Santos/PR
Apesar de alertas de aliados menos irracionais, tentando trazê-lo ao bom senso, a insistência de Jair Bolsonaro em zombar da morte e negar a ciência perdura. No próprio encontro com Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, na Cúpula das Américas nesta quinta-feira (9), Bolsonaro voltou a classificar como “equivocada política do ‘fique em casa’, ‘a economia a gente vê depois’”. E desse modo, a negar protocolos científicos usados em todo o mundo para combater a covid-19. Para o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo, Bolsonaro tem disposições de personalidade ligadas ao funcionamento discursivo que ele classifica como paranoide.
O comportamento do presidente brasileiro diante da pandemia causada pelo novo coronavírus e a indiferença diante de centenas de milhares de mortos – junto com a explosão inflacionária e a crise econômica – foi o fator que o levou a perder mais eleitores durante seu mandato. Mesmo assim, sua conduta se mantém a mesma. Por essa e outras razões, mais do que um político incapaz, muitos não o consideram uma pessoa normal. O que caracteriza Bolsonaro psicologicamente?
“O paranoide mimetiza vários traços da paranoia”, explica Dunker. “Bolsonaro tem um discurso paranoide, uma produção contínua de inimigos. Então, faz uma projeção da culpa nos outros. Tudo o que é bom está em torno do ‘nós’, e o que não é bom – e ameaça o ‘nós’, ‘nossa família’ e ‘nossos valores’ – é identificado como o ‘outro ou eles’.”
“Pequeno grande homem”
Em torno dessa personalidade que comanda o país, há uma notícia boa e uma ruim. A “novidade positiva”, avalia Dunker, é que o bolsonarismo tornou visível o que era oculto. Ou seja, deu visibilidade e agregou em torno de si “o pior do Brasil”, na expressão do analista. Bolsonaro também exibe um traço clássico do fascista: ele se conecta diretamente com a massa, ignora as instituições e as considera inimigas, ou as usa para atingir seus próprios fins.
A má notícia é que, com ou sem Bolsonaro, o bolsonarismo permanecerá. “Porque ele já estava aqui. O fascismo sempre esteve na cultura brasileira, mas contido, silenciado, aparecendo nas frestas. O que acontece agora é novo, ao criar um movimento popular”, diz Dunker. Mesmo que o atual mandatário perca a eleição, o que parece certo, ”a gente deve se preocupar com o discurso que Bolsonaro conseguiu organizar, essa forma de laço social paranoide.”
Segundo o filósofo alemão Theodor W. Adorno, o líder fascista é um “pequeno grande homem”, uma pessoa pequena. “Aquele tio meio marginal na família, que capitaliza as projeções dos que se sentem como ele, pequenos e com seu território invadido pelo outro.” A ressalva é que uma parte dos apoiadores do governante brasileiro, na opinião do professor da USP, não é de verdadeiros fascistas, mas de pessoas iludidas.
Muitos se arrependeram de votar nele, embora boa parte desses tenha dificuldade de reconhecer isso. No caso de Bolsonaro, o que o torna particularmente perigoso é que teve a habilidade de atrair um número significativo de pessoas que interpretam a realidade social de maneira simplista como o discurso do presidente. “Um discurso débil, de baixa inteligência, persuasão muito simplificada, que não consegue enfrentar debate. Como o debate pressupõe igualdade, essa pessoa se sente ameaçada, e então evita essa situação.”
Doença social
A realidade simplista dos seguidores do presidente se traduz socialmente de várias maneiras no cotidiano: se há mais negros nas universidades públicas, “é porque eles estão invadindo ‘nosso’ espaço; se trabalhadores domésticos viajam mais do que eu, eles estão tomando o que é ‘nosso'”.
O discurso bolsonarista envolve também a autorização implícita (e muitas vezes explícita) para humilhar, bater, violentar o “mais fraco”: a mulher, o homossexual, o indígena. “O mundo tem de ser dividido entre fortes e fracos, para que você sinta medo”, diz Christian Dunker.
O combate a essa espécie de doença social que se propaga não será fácil. Depende de se construírem políticas contra os pilares do bolsonarismo, em grande parte sustentados pela ignorância. Essas políticas precisam ser construídas desde a escola. Para o psicanalista, insistir na educação sexual, por exemplo, é positivo. “É preciso voltar a coisas que já eram dadas como já resolvidas, mas não estão”, referindo-se principalmente às questões envolvendo seus conhecimentos e atuação.