Arquivo Nacional
A caminho do fim de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) mantém a perseguição a opositores do regime militar que foram vítimas da tortura nos porões da ditadura civil-militar (1964-1985). Em todo esse tempo a Comissão de Anistia deferiu cerca de 5% dos pedidos de reparação. E ainda está em estudo a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, embora ainda esteja bem longe de localizar e identificar todas as vítimas. Ou seja, pela legislação, tem um longo trabalho pela frente.
“Não temos mais uma Comissão de anistia. E sim um Tribunal de Exceção. Haja vista o julgamento da ex-presidenta Dilma Rousseff e do deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). Não é pelo fato de ela ter sido presidenta e ele ser deputado, mas pelo histórico deles. Foram presos, passaram por torturas e não tiveram o direito de ser anistiados”, disse à RBA Rosa Simiano dos Santos, de Brasília.
Segundo ela, os conselheiros do órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Bolsonaro atuam contra as vítimas da ditadura. E nenhuma delas deve ser anistiada, na visão deles. “O que se diz lá é que se você foi preso e torturado, o caso é de polícia. É preciso procurar uma delegacia e denunciar. E se um trabalhador, perseguido, perdeu o emprego, a questão já é um problema trabalhista. Ou seja, tem de ir no Ministério do Trabalho.”
Coerente com as diretrizes do governo Bolsonarista, a Comissão de Anistia é formada em sua maioria por militares das Forças Armadas e auxiliares. Entre eles, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), uma organização formada em 1998, cujo nome faz contraponto ao Tortura Nunca Mais. Este último, foi fundado em 1985 por vítimas da repressão política do regime da ditadura. Paiva foi quem comandou o processo que negou pedido de anistia a Dilma Rousseff no começo de junho.
‘Um milico que serviu com Ustra vai estar lá para defender nossos interesses? Para ler o processo e dizer: ‘essas pessoas pessoas aqui foram torturadas’? Não vão. A Lei 10.559/2002 determina que a comissão tem de ter representante da defesa e dos anistiados. Há advogados dos anistiados, como Victor Neiva, que foram expulsos”, relatou Rosa.
As reuniões dos conselheiros de Bolsonaro, conforme conta, servem para oficializar decisões tomadas anteriormente, nas quais eles já indeferem os pedidos das vítimas da tortura. Ou seja, em três dias julgam quase 600 processos, que acabam todos indeferidos. O presidente da Comissão é o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, autor de uma ação que suspendeu, em 2015, o pagamento de indenização a familiares do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca.
No entanto, ele não anuncia nenhum resultado sem antes “olhar na cara do Rocha Paiva”, em busca de aprovação, continua a ativista. “Está lá como fantoche. Já foi assessor do Flávio Bolsonaro, quando deputado. Já foi do (Hamilton) Mourão (vice-presidente da República). Rocha Paiva, por sua vez, chega lá distribuindo o livro de memórias de Ustra (é autor do prefácio) e ataca as vítimas da ditadura. Diz que o livro conta a verdadeira história do país e nos chama de terroristas!”.
Nova tortura décadas depois
Tudo isso, para Rosa Simiano, é como a repetição de uma “sessão de tortura” para as vítimas dos porões do regime. Pessoas como seu pai, que passaram, por exemplo, por sucessivos choques elétricos na genitália e nos mamilos disparados pelos que ela chama de “tarados”. “Desproporcional o que passam. Uma nova tortura”, diz.
Nesses quase quatro últimos anos, em meio aos inúmeros problemas, a Comissão de Anistia de Bolsonaro deferiu apenas 5% do total dos pedidos das vítimas da tortura nos porões da ditadura. Nesse percentual estão pedidos que acabam decididos na Justiça e só então eles dão uma definição favorável, analisa Rosa, que acompanha o tema desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), quando foram criadas as primeiras comissões. “Nunca houve essas barbaridades vistas agora.”
Os problemas começaram a surgir já durante o governo golpista de Michel Temer, em 2016, a partir da entrada do ministro Torquato Jardim. Por isso os anistiados querem a anulação de todas as deliberações desde então.
Além de desconfigurar totalmente a Comissão de Anistia e seus propósitos, o governo de Jair Bolsonaro pretende extinguir também a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. E não o fez no último dia 28, após leitura do relatório, como pretendia, por pressões de ativistas e do Ministério Público Federal.
Bolsonaro contra comissão de mortos e desaparecidos
Criada em 1995, no governo FHC, a Comissão de Anistia é fruto de acordo entre os ministérios da Justiça e do Exército. E cumpre determinação constitucional de reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro no desaparecimento e na morte de presos políticos durante a ditadura civil-militar. Pela lei, a comissão só pode ser extinta quanto localizar e identificar todos os mortos e desaparecidos por motivações políticas daquele período. Segundo Rosa Simiano, a estimativa é que em 27 anos apenas 10% do trabalho tenha sido realizado.
“Quando a Dilma tomou o golpe, havia na faixa de 13 mil processos para julgamento na Comissão de Anistia. Antes da pandemia, eles falavam em só 2 mil processos. Como querem passar a boiada, temos certeza de que querem fechar a comissão de mortos e desaparecidos’, disse.
No último dia 21, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) realizou audiência pública para tratar do tema. Vítimas da ditadura que aguardam a reparação do Estado pela violência sofrida, ou que tiveram suas indenizações cassadas por Bolsonaro, esperam por um encontro com o pré-candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Conforme Rosa Simiano, essas reivindicações serão levadas a todos os presidenciáveis. No entanto, ela acredita que Lula, que também foi perseguido pela ditadura na década de 1970, quando comandou as primeiras grandes greves dos metalúrgicos no ABC, deve ser mais sensível à causa. “Nossa história tem de estar nos livros didáticos, acadêmicos, para contar o que foi a nossa luta até chegar na democracia. Temos de fazer a justiça de transição, punir os torturadores. Não é revanchismo, mas é por não ter punido os torturadores que hoje eles estão em toda parte. Na Câmara há muitos. Uma avalanche de milico aqui dentro, de farda do Exército, como se quisessem intimidar a gente”, disse. Um nojo, segundo ela. Mas misturado com o medo de uma criança de 5 anos