Encruzilhada Natalino: major Curió foi derrotado ao tentar acabar com o acampamento que constitui um dos berços do que hoje é o MST - Foto: Arquivo MST
É costume consagrado e respeitoso o de nada se dizer do mal que pessoas já falecidas praticaram, já que elas não podem mais se defender. No caso do major Curió, porém, falecido no dia 17 deste agosto, é lícito abrir-se uma exceção, por três razões principais.
A primeira, pela simples e necessária fidelidade devida à história do Brasil, que as Comissões da Verdade revelaram sobre o que ele fez de muito ruim, colocando os seus serviços a toda a sorte de atrocidades que as Forças Armadas do país praticaram desde o golpe de Estado de 1964, por elas executado.
A segunda, pelo exemplo a ser seguido por qualquer brasileira ou brasileiro, pelo brio, a coragem, a determinação das vítimas que resistiram, algumas até ao sacrifício da própria vida, ao poder da atuação violenta e repressora que esse cidadão colocou em prática contra os seus próprios conterrâneos.
A terceira, pela extraordinária urgência com que, nos dias de hoje, a democracia, o Estado de direito e a cidadania estão correndo o risco de serem outra vez sacrificadas pelo ressurgimento da mesma inspiração “bélica”, armada, odienta, que motivou o golpe anterior, dividindo o povo, mesmo a custa das mesmas mentiras. O major Curió encarnou essa inspiração, do tipo que monopoliza o que entende por bem, para poder demonizar quem quer que ouse contrariá-la, como o mal.
No que se refere à primeira razão, a Agência Estado publicou, no dia seguinte ao da morte de Curió, um resumo da sua biografia truculenta, o número dos guerrilheiros do Araguaia assassinados a mando dele, a maneira como agiu enganando, manipulando gente ingênua que lhe servisse de informante, o modo como isolava regiões, mantinha vigilância rigorosa sobre movimentação de pessoas, infiltrava subordinados entre os grupos que considerava suspeitos de oposição ao regime militar da época, para sumariamente decidir o que fazer com eles. Como agente do Centro de Inteligência do Exército (CIE), agiu em vários pontos do país, mandando e desmandando com autoridade que se auto impunha, mas sempre em nome da segurança nacional, e contra os “comunistas”. Construiu fama suficiente para se eleger deputado federal, em grande parte pela liderança que exerceu sobre o grande garimpo de Serra Pelada na Amazônia. Até uma cidade, hoje, leva seu nome, por isso.
Um retrato da desproporção de poder que costumava usar contra as suas vítimas pode ser visto na mesma nota da Agência Estado, quando revela que ele foi acusado e julgado “pelo homicídio do menor Laércio Xavier da Silva e lesão corporal de Leonardo Xavier, jovens infratores, em uma chácara em Sobradinho, no Distrito Federal”. Essa desproporção, típica da ditadura, foi assumida pelo major Curió, dando-lhe efeito garantido e covarde, contra gente pobre e desarmada, sendo essa a segunda razão de se poder julgá-lo, mesmo depois de morto.
Como a Zero Hora datada do dia 18 noticia, o major Curió esteve presente na famosa encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, onde um número expressivo de sem-terras montou um acampamento em defesa do direito de acesso à terra, pela reforma agrária, no início da década de 80 do século passado, constituindo um dos berços do que hoje é o MST. Em parte, a publicação confirmou o que o padre Arnildo Fritzen, um dos apoiadores ético-políticos e religiosos, revelou à Comissão da Verdade gaúcha. Os dados que este padre forneceu são inquestionáveis.
Empenhado não só em desmantelar o acampamento, como em eliminar qualquer efeito simbólico e encorajador da reforma agrária e de outros protestos contra o regime militar de então, Curió buscou servir-se ali dos mesmos métodos, de início sedutores, que utilizou com os vizinhos da região onde agia a guerrilha do Araguaia. “Vestido de cordeiro”, mas sob o manto explícito da ditadura e conivência do governo do estado da época – com apoio de latifundiários, da maior parte da mídia e da cumplicidade consciente ou mesmo ingênua de alguns bispos – tentou de tudo para remover o acampamento e desmoralizar quem apoiasse aquele sinal de inconformidade e rebeldia. Era uma reunião de agricultoras/es sem-terra, que a cada dia fez crescer, no Brasil e em todo o mundo, uma forte repercussão dos ideais, dos confrontos, das lutas em defesa da vida, da liberdade, do direito de acesso à terra e da reforma agrária, tudo aliás previsto de maneira clara no Estatuto da Terra, uma lei baixada pela própria ditadura. Ou seja, nada daquilo que o regime militar visava impor como vida de um povo a seu exclusivo modo de convivência.
Antes de tudo, o major Curió tentou se passar como o mediador de uma mudança de lugar. A ida de todas/os acampadas/os para uma terra muito maior e melhor (Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso), que acabou para grande parte dos/as seduzidos/as em frustração dolorosa e retorno amargo. Depois, à medida que a resistência das/os sem terra aumentava, se organizando e se opondo às suas propostas, exigindo terra no Rio Grande do Sul mesmo, o caráter verdadeiramente repressivo da sua missão se revelou.
Foram duras e violadoras dos direitos humanos as providências por ele executadas, reveladas pelo padre Arnildo e detalhadas em estudo publicado pelo pós-doutor em educação intercultural, professor Telmo Marcon, da Universidade de Passo Fundo (“Os movimentos sociais como educadores”, editora UPF, 2016). Infiltrados pelo major, no acampamento, espalharam a notícia de que o enquadramento daquelas famílias na lei de segurança nacional só poderia ser impedido se a mudança de todas para Lucas do Rio Verde se efetivasse. Visitas aos acampados foram proibidas e até “o controle dos alimentos tornou-se um dos principais instrumentos e pressão”. Mentiras eram disseminadas com frequência para dividir as famílias, num crescendo de provocação de incômodos e angústias, pelo qual o major respondia a cada manifestação de resistência que elas promoviam.
Até que, em vez de acabar com o Acampamento Natalino, Curió é que foi obrigado a ir embora no dia 31 de agosto de 1981. Ele levantou aquela parafernália toda, que havia sido montada para enxotar os/as sem-terra em um mês como ele previra, passando a vergonha de uma acachapante derrota. Foi batido em todas as frentes, desde a militar até a política, a econômica, a ideológica, a social e a religiosa. Foi servir à ditadura em outros estados, deixando um comunicado de azedo ataque a quem apoiou o acampamento, especialmente para a Igreja Católica que chamou os/as acampados/as de “irmãos.”
Daí a terceira razão para se refletir sobre o que a morte do major pode ensinar em relação ao que está acontecendo hoje no Brasil e vai ser decidido nos próximos setembro e outubro. O país vai enfrentar uma nova encruzilhada, bem comparada com a de Natalino.
De um lado pode escolher o caminho de um modelo de convivência do tipo major Curió, baseado na imposição e nas ameaças do medo, da insegurança, da violência, do aprofundamento da desigualdade social, da indiferença com o crescimento da pobreza, da fome e das doenças, cheio de agressões à mãe terra, ao meio ambiente, e de invasões do agronegócio e da mineração sobre as terras indígenas e quilombolas. Tudo justificado pela necessidade de armar-se todo o mundo, desconfiar-se de quantas e quantos não se enrolam na bandeira nacional, agora de uso proibido a quem não participa do grupo que a sequestrou.
De outro lado, um modelo de convivência baseado simplesmente nas devidas e sempre prometidas garantias de justiça e de paz, que o Brasil promete, a cada Constituição, e reluta em cumprir. Esse vai buscar vencer o primeiro, não com os fuzis, os tanques e a cavalaria de Golias Curió. Só vai armado, como Davi, de uma funda, as eleições, e de uma pedra, o voto. Por incrível que se mostre essa desigualdade de forças, o segundo está, como já aconteceu antes, com muito mais chance de ganhar do que o primeiro.
*Jacques Távora Alfonsin é procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul