Deputado Zé Ricardo (PT-AM) foi convidado a integrar a transição na área de desenvolvimento regional - Divulgação/Assessoria de imprensa
Endurecer a fiscalização ambiental não será suficiente para cumprir a proposta de "desmatamento zero" feita por Lula. Será preciso oferecer uma alternativa concreta de renda a famílias que, em muitos casos, são empurradas para o crime ambiental pela falta de perspectiva econômica.
"Esse é o maior desafio", resume o deputado federal Zé Ricardo (PT-AM), em entrevista completa a seguir.
Ele integra a transição de governo na área de desenvolvimento regional e defende o fortalecimento de uma "nova economia" da floresta, baseada na produção de alimentos e na industrialização de produtos típicos da região.
:: Eleito há uma semana, Lula já fez mais pela Amazônia do que Bolsonaro em 4 anos ::
"Sem devastar e sem ter impactos ambientais, há atividades que podem gerar renda, trabalho e sustentação para a população no Amazonas", defende o parlamentar, que entrou na vida pública como vereador em Manaus (AM) há 18 anos.
Sem ter conquistado a reeleição em 2022, Zé Ricardo diz que aceitaria um convite para integrar o governo Lula. Mas prevê que sua atuação "na sociedade civil" será essencial, segundo ele, diante do encolhimento da bancada socioambiental no Congresso.
"Praticamente acabou a representação parlamentar da esquerda que mais defende a pauta ambiental, que defende um desenvolvimento que não vai afetar negativamente a vida das pessoas. Do Amazonas eu era o único com essa pauta".
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Qual é o saldo deixado pelo governo Bolsonaro em relação ao desenvolvimento sustentável da Amazônia?
Zé Ricardo: O governo federal tem o Ministério do Desenvolvimento Regional. E lá estão vários órgãos que financiam empreendimentos, como a Suframa [Superintendência da Zona Franca de Manaus] e a Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia]. O Ministério do Desenvolvimento Regional cuida do saneamento, de mobilidade urbana e de moradia. E isso interessa muito para o Amazonas, porque o governo Bolsonaro não cuidou de moradia, não injetou recursos para a população mais pobre. E foi pouco recurso para o saneamento e poucos recursos para desenvolver a nossa região.
Levamos uma série de preocupações para a comissão de transição. A comissão não vai conseguir ver todos os problemas, ela vai levantar alguns pontos mais críticos e urgentes, além de algumas sugestões que vão ser entregues para quem for assumir os ministérios. Devemos voltar a ter o Ministério das Cidades para cuidar de saneamento, moradia e mobilidade urbana. E, permanecendo o [ministério do] Desenvolvimento Regional, ele deve cuidar dos órgãos de desenvolvimento.
Os bancos que financiam atividades na Amazônia também devem participar dessa discussão. É preciso desenvolver, gerar emprego e renda. E cuidando da questão ambiental, cuidando dos povos indígenas. Eu acho que esse é o maior desafio nessa história.
O Norte tem a maior proporção de fome no campo entre todas as regiões do Brasil. Paradoxalmente, a insegurança alimentar afeta os produtores de alimentos da Amazônia. Como corrigir essa injustiça?
Eu acredito que a produção de alimentos tem que ser o primeiro foco. E aí entra a agricultura familiar, os pequenos produtores e a necessidade de você dar sustentação a essas atividades com crédito, assistência e apoio. E com condições de ter preços justos para dar o sustento das famílias.
O Amazonas tem tudo muito concentrado na capital. A economia é baseada na Zona Franca [de Manaus], nos incentivos e nas indústrias. Mas não há incentivos para as indústrias que trabalham com frutos regionais. Eu vou defender que se possa ter setores da economia novos, principalmente na produção de alimentos, em uma escala talvez maior, como é o caso do peixe, que pode gerar emprego no interior e na capital.
Outra questão é a ciência e tecnologia, a pesquisa em relação à biodiversidade. Eu defendo que uma árvore em pé vale mais do que uma derrubada. A indústria da madeira não é a solução, mas, a partir da floresta, você deve extrair o que é de valor. Sem devastar e sem ter impactos ambientais, há atividades que podem gerar renda, trabalho e sustentação para a população no Amazonas.
Com certeza isso é difícil, não é de uma hora para a outra. As ações emergenciais vão prevalecer num primeiro momento, porque precisa ter recursos para investimentos. Precisa melhorar a comunicação, a internet, a questão do transporte, acessibilidade. Tem muita coisa deficiente no Amazonas, e isso dificulta a vida da população.
No governo Bolsonaro, o sul do Amazonas virou uma das maiores frentes de devastação da Amazônia, junto com porções do Acre e Rondônia. Isso está atrelado ao modelo de desenvolvimento defendido pelo presidente e seus apoiadores, o agronegócio predatório e ilegal. É possível frear ou reverter essa boiada?
Nesse governo, foram poucos recursos para investir no desenvolvimento regional. Não tinha recursos para moradia, para saneamento, para apoiar as cidades na questão da mobilidade. E também para o ano que vem, não há recursos nessa área que envolve a Defesa Civil, que atua em desastres naturais, principalmente na questão das chuvas. E, é claro, é preciso ter recursos, para poder ter ações que ajudem as famílias. O retrato que trouxeram era realmente um ministério sem atuação efetiva. Uma ausência do governo.
Olhando aqui para o Amazonas, vemos que prosperou a derrubada de árvores. Aumentou o desmatamento, o garimpo, a mineração ilegal e, logicamente, uma série de ameaças aos povos indígenas. Isso ocorreu porque não tinha projeto de desenvolvimento regional, não tinha recurso. Ao mesmo tempo não tinha uma estrutura dos órgãos públicos para fiscalizar os crimes ambientais, a grilagem de terra pública. E o sul do Amazonas é essa área de expansão de interesses do agronegócio. O Lula já falou que, primeiro, ele vai enfrentar a questão do garimpo. E para isso vai ter que fortalecer Ibama, Polícia Federal, e ICMBio. Sem isso, como garantir as áreas dos extrativistas, ribeirinhos e indígenas?
É preciso se discutir que tipo de desenvolvimento que se quer para essa região e para o Amazonas. Esse é o momento [transição] para levantar os problemas, os riscos a surgir. Mas é claro que nós temos algumas sugestões. O Lula já falou que quer retomar as conferências [nacionais, interrompidas por Bolsonaro]. Acredito que vai começar um processo de escuta e de participação da sociedade civil, com a retomada e o fortalecimento dos conselhos de um modo geral. Com isso a população vai apontar qual é o melhor caminho para desenvolver determinadas regiões.
O senhor aceitaria um convite para integrar o governo Lula?
Estou na política há um certo tempo. Fui vereador em Manaus e deputado estadual, conhecendo toda a realidade do Amazonas. Vou continuar ajudando naquilo que for possível, se tiver um convite para eu contribuir. Independente disso, vou continuar lutando pelo nosso estado e pelo nosso povo como sociedade civil. Sou economista e sempre trabalhei nessa área. Então queremos continuar contribuindo com a questão do desenvolvimento do nosso estado.
Eu fui o oitavo deputado mais votado. Pela regra atual do coeficiente eleitoral, nossa federação não atingiu o coeficiente eleitoral, apesar de eu ter tido essa boa votação. Se fosse na regra de 2018, eu teria entrado. Isso aconteceu em muitos estados, a maioria aqui do Norte, que tem poucos deputados. Essa nova regra funciona melhor para estados que têm grandes bancadas. Além disso, muitos candidatos têm grandes estruturas financeiras e acabam tendo uma chance mais efetiva.
A bancada socioambiental da Amazônia eleita para a Câmara em 2022 encolheu bastante. O Congresso será um entrave para a política de "desmatamento zero" defendida por Lula?
Nós tivemos um grande retrocesso na Amazônia como um todo. Praticamente acabou a representação parlamentar da esquerda que mais defende a pauta ambiental, que defende um desenvolvimento que não vai afetar negativamente a vida das pessoas.
Do Amazonas eu era o único com essa pauta. O Acre perdeu deputados com esse perfil. Roraima tinha a deputada Joênia [Wapichana, não reeleita]. Mato Grosso tinha a Rosa Neide. E também tem o Célio Moura em Tocantins, Camilo Capiberibe e a professora Marcivania no Amapá. Rondônia perdeu deputados de esquerda. No Acre foram dois parlamentares [de esquerda perdidos].
Então há menos vozes nessa pauta. E agora o perfil majoritário dos deputados, pelo que percebi do Amazonas, é de quem defende liberar a mineração e a indústria madeireira. Então essas vozes aumentaram.
Acontece que o Lula já falou que vai cuidar da Amazônia. Então é uma decisão política do governo federal. Eu acredito que os crimes ambientais vão ser freados. Mas é preciso ter em paralelo um projeto de desenvolvimento. Mesmo tendo parlamentares com esse perfil mais à direita, o governo tem a sua proposta.
E depois tem muitos deputados que tradicionalmente são governistas. Muitos acabam apoiando o governo em muitos projetos. Da bancada que nós temos no Amazonas já tem deputados que são de partidos que apoiaram o Lula desde o primeiro turno. O PSD, por exemplo, já temos dois deputados, Átila Lins e Sidney Leite. Acredito que outros partidos também estarão nessa base de apoio [de Lula].
Acredito que o mais importante nesse momento é que teremos um governo federal que olhe pelo povo da Amazônia e pelo estado do Amazonas, o que nós não tínhamos no atual governo.