Foto: José Cruz/Agência Brasil
Peça 1 – o cenário político
O primeiro passo do estrategista é analisar o cenário político.
Vulnerabilidades
- Congresso, dominado pelo Centrão e direita.
- Mercado, com ampla influência na mídia.
- Forças Armadas, ocasionalmente legalistas, mas nem tanto.
Trunfo
Popularidade –> Bem estar –> Economia
Ou seja, a única arma para enfrentar essa soma de vulnerabilidades é reforçar a popularidade. Só que ela depende do bem estar geral – consumidores e empresas – que depende da melhora da economia. E tem-se um tempo político pela frente que, se não for bem administrado, tornará a crise política irreversível.
Economia
Por sua vez, a economia depende do entrelaçamento de uma série de fatores: investimentos público, privado e externo, fortalecimento do mercado de consumo etc.
O fator juros
Em todos esses elementos, entra o fator Selic-taxa de juros.
Vamos remontar o quadro acima com os fatores diretamente afetados pela Selic.
Por exemplo, o Estado disponibiliza investimentos para o setor privado, como uma obra de engenharia. Só que a empresa precisará de capital de giro para construir a obra e, depois, receber o pagamento. E a taxa de juros é essencial para viabilizar o investimento.
No caso do investimento privado, a taxa de juros inviabiliza a tomada de dinheiro e o mercado de consumo. No caso do investimento externo, influencia diretamente a relação dívida/PIB.
Ou seja, sem a redução da Selic, não se tem recuperação da economia, não aumenta o bem estar do país e não permite a Lula fortalecer a popularidade para enfrentar as vulnerabilidades e as próximas eleições.
Peça 2 – a estratégia Haddad
A estratégia montada pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, consiste nos seguintes pontos.
- Não mexer com nenhum dos dogmas do mercado, a começar pela independência absoluta do Banco Central.
- Dentro das regras do mercado, apresentar uma alternativa à Lei do Teto, o arcabouço fiscal.
- Com base no arcabouço, tirar o último álibi do Banco Central para não reduzir a taxa Selic.
- Sem esse álibi, aumentariam as pressões do setor privado e político sobre o BC, forçando-o a reduzir a Selic.
- Reduzindo a Selic, a economia começaria a respirar, permitindo a Lula recuperar popularidade e incrementar as políticas de inclusão.
Para aprovar o arcabouço, no entanto, teve que se sujeitar a uma série de restrições: limites rígidos de despesas, pouco espaço para o investimento e, ainda, compromisso de equilíbrio fiscal a partir do próximo ano e de superávit a partir de 2025. O arcabouço conseguiu até o feito de incluir o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação), que havia ficado de fora da Lei do Teto.
Para conseguir aumentar os gastos, o governo terá que aumentar as receitas. Mesmo assim, há um limite de crescimento de 2,5% nos gastos.
Se o governo errar na projeção, a diferença será paga em 2025. Ou seja, se a Fazenda não conseguir cumprir suas metas de equilíbrio fiscal, a diferença será cortada dos gastos no ano seguinte.
Pelo modelo proposto, as metas serão alcançadas pelo aumento das receitas – decorrente do corte de subsídios injustificados e restrições à engenharia fiscal de grandes empresas.
Ao apostar todas as fichas no arcabouço, em um primeiro momento a Fazenda amplia ainda mais as restrições à recuperação da economia, esperando recuperar no segundo momento.
É uma aposta temerária. Em preto, as restrições sob controle do BC; em vermelho, as restrições impostas pelo arcabouço fiscal.
Para essa estratégia dar certo, terá que ocorrer, simultaneamente, uma redução da Selic e um aumento da receita. Se ambos os desafios falharem, se terá o comprometimento total das peças necessárias para um processo de recuperação da economia: os investimentos e gastos públicos.
Peça 3 – os 2 reis do tabuleiro
Para sua estratégia ser bem sucedida, Haddad terá que contar com a boa vontade de dois personagens absolutamente não confiáveis:
- O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para reduzir a Selic.
- O presidente da Câmara Arthur Lira, para endossar a retirada de privilégios fiscais.
No primeiro movimento, ambos foram mais que parceiros, foram os verdadeiros autores do arcabouço. Não houve, da parte do governo, nenhuma disputa política em torno do arcabouço e nem da reforma administrativa.
Não se trata de nenhuma crítica a Haddad, mas de um dado da realidade: Arthur Lira é senhor da situação, assim como Campos Neto. Mas fica a dúvida: Haddad se adapta à estratégia de não enfrentamento de Lula; ou, de fato, passou a endossar todos os princípios de política econômica do mercado?
A esperança de Haddad é que, entregue o que Campos Neto pediu, haja uma pressão de seus aliados pela redução da Selic.
Aí, é importante analisar o entorno de Campos Neto e Lira.
Roberto Campos Neto
Há duas explicações para sua insistência em uma Selic desproporcionalmente elevada.
A primeira, o álibi da ignorância, o sujeito que segue o manual sem a menor noção sobre o objeto afetado. Seu único universo de análise é o mercado, não a economia real.
O segundo, a ideologia. A economia saiu de um período de ultraliberalismo, de grandes negócios com empresas públicas, de esvaziamento de políticas públicas, que vai do interinato de Temer ao período Bolsonaro-Paulo Guedes. Campos Neto é um soldado de Guedes. Manter a Selic em 13,75%, ou derrubá-la lentamente, significará o fracasso de qualquer política alternativa, por mais tímida que seja, e a volta do padrão Paulo Guedes. Ou seja, a Selic hoje é uma garantia da volta do ultraliberalismo em 2026.
A esperança seria um aumento expressivo da pressão dos setores produtivos. Há um tsunami a caminho, uma quebradeira generalizada, sem despertar a menor sensibilidade da mídia. Na reunião do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, o alerta de Benjamin Steinbruch, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) sobre o vendaval que vem pela frente passou quase em branco. E a indústria está órfã de lideranças fortes.
Qual a probabilidade de que Campos Neto, por livre vontade, proceda a uma redução significativa da Selic? Digamos que seja de 40%.
Arthur Lira
Lira é negócio. Aprovou o arcabouço fiscal porque interessava diretamente seus patrocinadores. E não tem o menor interesse de aprovar retirada de subsídios aos grandes grupos econômicos.
Agora, há duas possibilidades pela frente: ou a Fazenda consegue reduzir benefícios fiscais de grandes grupos, ou terá que ampliar a privatização para fazer caixa. Ora, benefícios fiscais tem grandes interessados pela frente. Queda de gastos sociais, também. Qual a probabilidade de Lira apoiar as medidas de restrição dos subsídios? Digamos, de 30%, com otimismo.
Juntando as duas probabilidades, se terá uma probabilidade total de 12% de implementação das duas medidas centrais para a estratégia Haddad ser bem sucedida.
Peça 4 – a estratégia da não confrontação
Até agora, o que se percebe é a incapacidade do governo de enfrentar qualquer frente de pressão.
Congresso | A mudança no projeto de reforma administrativa mostra o amplo controle conservador sobre a Câmara. A bancada ruralista conseguiu esvaziar o Ministério do Meio Ambiente e o dos Povos Indígenas, abrindo a porteira para a demarcação de terras indígenas. Por mais que o governo queira comemorar, a aprovação do arcabouço foi vitória de Arthur Lira. |
Mercado | Haddad encampou completamente o discurso de mercado e de restrições fiscais. Dificilmente abrirá fogo contra Campos Neto, o que atrasará substancialmente a redução de juros. |
Forças Armadas | Lula entregou o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) a um militar, colocou sob suas asas a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e manteve sem nenhuma forma de controle civil a inteligência militar. Os militares continuam com os mesmos espaços conquistados nos últimos anos. Até hoje Lula nao assinou o decreto que reinstitui a Comissão da Verdade e dos Desaparecidos, por receio das FFAAs. |
A crise econômica
Confira-se a pesquisa Focus, que levanta as expectativas do mercado. É o melhor termômetro das intenções do Banco Central, devido à interação permanente entre Campos Neto e o mercado.
Na última pesquisa, a previsão é 2023 fechando com Selic a 12,5%; 2024 com Selic a 10%; e 2025 com Selic a 9%.
Já em relação ao PIB, a Focus prevê 1,20% em 2023, 1,30% em 2024 e 1,70% em 2025. As expectativas em relação a 2024 e 2025 são mero chutômetro.
É evidente que, com a projeção de Selic e de PIB, a dívida líquida do setor público só poderia subir. E a Focus trabalha com estimativas de 60,80% do PIB em 2023, 64,45% e 2024 e 67% em 2025.
Se o mercado estiver certo, a economia afunda.
A economista Leda Paulane tem dois pontos anti-crise relevantes.
Eu só colocaria duas peças adicionais no seu xadrez, que podem, penso, fazer alguma diferença: o elevado poder multiplicador das transferências de renda e a redução de preços dos combustíveis, sobretudo do gás de bujão. Acho que esses dois elementos podem ajudar a dobradinha economia/popularidade a respirar no curto prazo e, com sorte, ajudar a encaminhar o médio e longo prazos.
Peça 5 – a contagem regressiva
É evidente que o governo está fragilizado e batendo cabeça. Não colou a tentativa de apresentar como vitória a aprovação do arcabouço fiscal.
Mas é evidente, também, que nenhum governo vai para o matadouro sem reagir. Em algum momento será necessário uma freada de arrumação com Lula interrompendo sua ofensiva internacional, voltando-se para o dia a dia político e articulando as armas de que dispõem a Presidência.
Há um conjunto de instrumentos para enfrentar a crise, e que passam ao largo do arcabouço fiscal, como o poder de fogo dos bancos públicos, os projetos da Petrobras, os estímulos fiscais a novos investimentos.
A questão é o tempo político e a disposição política de Lula de sair da cartilha liberal – algo que só ocorreu nos dois primeiros governos devido à crise mundial de 2008.
Na sua volta ao poder, em 1950, Getúlio Vargas não demonstrava mais o tirocínio político e a energia do período anterior. Conspiravam contra o novo quadro político, diferente do seu período de liderança, a própria idade e o clima anticorrupção pesado, que precede os grandes golpes.
As constantes viagens internacionais de Lula são relevantes para a recolocação do país na geopolítica internacional e para a atração futura de investimentos. Mas a grande batalha é aqui e agora. E tem-se uma correlação de forças fortemente desfavorável.
Que estratégia adotará? Nunca a habilidade política de Lula será colocada tanto à prova. Mesmo sabendo-se que no fim do túnel tem um bolsonarismo aguardando a presa.