Mirtes, que perdeu o filho de 5 anos: realidade ainda mostra maus-tratos, violação de direitos e falta de acesso à informação - Reprodução/Youtube
A “invisibilidade” dos trabalhadores em serviços domésticos e de cuidados foi o tema de seminário no Tribunal Superior do Trabalho (TST), nesta quarta-feira (4). Um segmento com raízes na escravidão e formado, principalmente, por mulheres (mais de 90%) e negras (65%). Entre os participantes, a cientista política e ativista francesa Françoise Vergès e a ex-empregada Mirtes Renata Santana, mãe do menino Miguel, que morreu em 2020, aos 5 anos, após cair do nono andar do prédio onde ela trabalhava em Recife.
A criança foi deixada sozinha no elevador pela patroa (a mãe tinha levado o cachorro dos donos para passear), e desde então Mirtes tornou-se ativista em direitos humanos. Em junho, a Terceira Turma do TST confirmou condenação do ex-prefeito de Tamandaré (PE) Sérgio Hacker, e sua esposa, Sari Corte Real, ao pagamento de R$ 386 mil de indenização por danos morais coletivos. Eles eram empregadores de Mirtes. Já haviam sido condenados em primeira e segunda instâncias, a partir de denúncia feita pelo Ministério Público, em ação civil pública. (Recentemente, ela ganhou em primeira instância, em Recife, ação por dano moral individual. A indenização foi fixada em R$ 2 milhões. O casal decidiu recorrer.)
Discriminação e racismo
Assim, para o colegiado do TST, o casal “reproduziu padrão social discriminatório e racista em relação às trabalhadoras domésticas”. Além disso, a contratação foi fraudulenta: os salários eram pagos com recursos da prefeitura. Não havia recolhimento de contribuição previdenciária, nem pagamento de 13º ou de horas extras. As três trabalhadoras domésticas da casa, naquele período, tiveram que permanecer durante a pandemia, mesmo com pessoas contaminadas no apartamento.
“Hoje não sou mais empregada doméstica, e nem quero mais ser. E aconselho muitas a não ser também”, disse Mirtes, em depoimento durante o seminário. Ela falou sobre as origens escravagistas do trabalho doméstico. “As mulheres negras ocupavam as cozinhas dos senhores de engenho, trabalhavam cuidando dos filhos desses senhores e também eram exploradas sexualmente”, afirmou.
Direitos não são respeitados
Ainda hoje, as trabalhadoras sofrem com informalidade, maus-tratos, violação de direitos e falta de acesso à educação e à informação. Mesmo com a garantia legal conquistada há 10 anos (Emenda Constitucional 72, de 2013, e Lei Complementar 150, de 2015), muitos empregadores não cumprem a legislação e a fiscalização tem limitações.
Mirtes conta que, quando seu empregador foi eleito, passou a ganhar como funcionária da prefeitura. “Eu recebia pelos cofres públicos. Eu não sabia que era errado, não tinha tanta informação.” Ela só soube após a morte do filho. “Veio à tona de forma muito trágica na minha vida.”
Medo de denunciar
Mirtes lembrou que o setor também tem vários casos de trabalho análogo à escravidão. “Infelizmente, as pessoas ainda têm medo de denunciar. (…) Que tenha uma fiscalização maior, que também tenha informação e formação. Não sei como, mas tem que haver uma forma de salvar elas.”
Autora do livro Um feminismo Decolonial, Françoise contou que passou a observar, em todos os espaços públicos, a presença de mulheres que faziam a limpeza desses locais, mas não eram percebidas. “Eu queria compreender como se fabrica esse ‘desaparecimento'”, afirmou.
Essa investigação levou a um questionamento que se tornou conhecido: “Quem limpa o mundo?”. Todos os dias, lembrou, mulheres negras saem de casa para limpar escritórios, hospitais, restaurantes, ou vão “às casas burguesas”, e depois de uma jornada exaustiva voltam tentando encontrar um espaço no transporte público. A “ideologia racial de colonização” segue presente na sociedade, afirmou.
“Ninguém é invisível”
Na abertura do seminário, o presidente do TST, Lelio Bentes Corrêa, apontou a presença do preconceito, da misoginia e da desvalorização do trabalho domestico. “Ninguém é invisível. Nós é que repetimos padrões culturais. A falha é da nossa percepção”, afirmou.
O magistrado lembrou que em torno de 75% das trabalhadoras domésticas continuam na informalidade. “Não contam com qualquer proteção social ou trabalhista. (…) A regulamentação do direito do trabalho (no setor doméstico) chegou parcial e tardiamente. Ainda hoje, as trabalhadoras domésticas se veem marginalizadas.”
Conforme a edição mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, no trimestre encerrado em agosto havia 5,892 milhões de trabalhadores domésticos. Destes, apenas 1,476 milhão (25%) tinham carteira assinada.
Trabalho decente
Ainda durante o evento, foi lançado o Programa de Equidade, Raça, Gênero e Diversidade da Justiça do Trabalho, coordenado nacionalmente pela ministra do TST Kátia Arruda. A iniciativa faz parte da chamada Política Judiciária Nacional de Trabalho Decente.
Também participaram do seminário, entre outros, a diretora do Departamento de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Lorena Guimarães Arruda, a secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Isadora Brandão, e a deputada federal Fernanda Melchionna (Psol-RS), relatora da Convenção 156 (sobre igualdade de oportunidades) da Organização Internacional do Trabalho (OIT).