O ex-prefeito Janio Quadros foi mencionado aqui no GGN .Em razão disto lembrei-me de algo relacionado ao tal.
Quando FHC disputou a prefeitura de São Paulo, fiz campanha para o Suplicy num colégio que fica na Rua Tonelero. Éramos então três petistas (eu, Sérgio Augusto Afonso e Benedito Libério Bergamo) enfrentando batalhões de distribuidores de santinhos do Janio Quadros. Os simpatizantes de FHC eram muitos, menos numerosos que os do encantador de vassouras.
O dia começou calmo. Muitas pessoas passavam por nós e pegavam folhetos do “experimente Suplicy, tem de morango, framboesa e abacaxi”, os mais velhos passavam de cara fechada e mãos nos bolsos até se congratular com seus camaradas janistas. Vez por outra, um correligionário de FHC vinha conversar amistosamente conosco. “Não somos seus inimigos, vocês sabem. A nossa disputa é com aquele calhorda do Jânio.” – diziam.
A manhã se foi, os eleitores começaram a rarear. No início da tarde, uma viatura da PM passou por mim. Há uma dezena de metros ela freou bruscamente. De dentro dela saíram dois policiais e um sargento. Eles correram com brandindo seus cassetetes em direção à nossa “pauerpercula” mesinha com folhetos do PT. Quando estavam à apenas alguns passos de mim (eu estava ao lado da mesa, meus dois colegas estavam distribuindo panfletos na entrada do colégio), reconheci o sargento. Ele estudava na mesma Faculdade de Direito que eu, em Osasco.
“Não vem não Guerreiro, que eu te conheço. Se você aprontar aqui vou narrar a história no jornal que faço na Faculdade de Direito e colocar seu nome em letras garrafais para que todo mundo saiba quem você realmente é.”
O sargentão parou, sorriu amarelo e disse “O que é isto Fabião? Ninguém vai agredir ninguém aqui não. Eu só estava brincando. Democracia, entende? Pelo amor de deus não meta meu nome naquela merda de pasquim que você e o Benê editam.” Meus dois colegas vieram em meu socorro e só então viram que o caso havia sido resolvido antes de qualquer agressão ou prisão.
Algumas horas antes do fim da votação, as pesquisas de boca de urna começaram a ser divulgadas. Janio estava praticamente eleito. Então a tensão começou a subir. Os janistas ficaram eufóricos e começaram a provocar os camaradas de FHC, que por sua vez descontaram a frustração em nós. “Vocês petistas são culpados por esta merda. Se tivessem apoiado FHC o resultado seria outro.” Palavrões, empurrões, ameaças... e os janistas vieram em nosso socorro. Eles realmente tinham ódio dos FHCistas e os colocaram para correr.
O dono de um bar próximo ao colégio resolve burlar a Lei Seca. Ele começou a vender cachaça e cervejas para os janistas. Fui um dos primeiros a tomar cervejas proibidas naquele dia. Meia hora antes da votação se encerrar eles já haviam começado a comemorar o resultado previsível. Desmontei nossa “pauerpercula” mesinha, dobrei as banquetas, arrumei o material que restou e coloquei tudo no corcel onde os outros dois petistas já estavam.
Uma viatura da PM passa. Sérgio, o mais velho e experiente de nós três, faz sinal para a viatura e desce do carro. Coloco-me ao lado dele para ver o que irá ocorrer. Calmamente ele diz aos policiais que é apenas um eleitor e avisa-os que no bar, logo ali, dezenas de janistas estavam embebedando. Um crime evidente. O bar está a menos de 50 metros do local de votação e a eleição ainda não havia acabado. Entrou no carro e o estacionou. E lá ficamos os três petistas aguardando o espetáculo.
Os policiais foram até o bar e constataram o que estava ocorrendo. Voltaram para a viatura e se comunicaram com seus parceiros. Alguns minutos depois um caminhão da PM parou na frente do bar, duas ou três outras viaturas chegaram. Os janistas são abordados, presos, jogados no caminhão. Corre, corre, pancadaria, gritos de “Você sabe com quem está falando”. Rindo entramos no carro e voltamos para Osasco. Perdemos a eleição, mas ganhamos o dia.
Há quatro lições úteis que extraí desta história. A primeira e mais evidente é que uma caneta pode ser bem mais poderosa que tres cassetetes. A segunda é que um principiante geralmente tem sorte. Se o sargento que desceu da viatura para me agredir fosse outro esta história seria bem diferente. A terceira é que em política tudo é muito volátil. Quem hoje lhe é simpático, no momento seguinte lhe será hostil assim como você mesmo se vê obrigado a trair um aliado eventual pelo simples fato de que precisa vencer na derrota ou transformá-lo em derrotado na vitória. A quarta é mais sutil. É fácil ser tolerante quando as coisas vão bem, quando a percepção das coisas muda a intolerância entra pela porta que a tolerância sai. E neste caso a legenda pouco importa, porque todos pertencem a um único partido: aquele que quer partir o crânio dos adversários. Dependendo da situação, todos estamos sujeitos a naufragar na intolerância e, portanto, no moralismo.
Janio ganhou, tomou posse e antes de se sentar na cadeira limpou-a. Ele não precisava fazer aquilo. Fez porque sabia bem que em política, atos e palavras podem ter um valor simbólico imenso. FHC havia posado como prefeito e não foi. Acabou sendo presidente, mas esta é uma história de terror que contamos para as criancinhas que não viram a fome mortal que ele produziu no nordeste.
FHC era democrata, nos últimos tempos virou golpista. Quando ele morrer a cadeira dele na ABL ficará vaga. Não ficarei surpreso ou triste se alguém a limpar antes de se sentar nela.