Comunidade quilombola Kalunga do Engenho, em Goiás: “O Estado brasileiro precisa tomar medidas imediatas para a proteção das lideranças de todo o Brasil - Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
A média anual de assassinatos de integrantes de comunidades quilombolas no Brasil praticamente dobrou nos últimos cinco anos, se comparado ao período de 2008 a 2017. É o que revela a nova edição da pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, lançada nesta sexta-feira (17).
Desenvolvido pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direitos, o estudo registra os diversos tipos de violência contra quilombos ocorridas no período de 2018 a 2022. Os dados evidenciam o agravamento das desigualdades e violências historicamente praticadas contra as comunidades quilombolas, já revelado na 1ª edição.
No quinquênio analisado foram mapeados 32 assassinatos, com registro de casos em 11 estados e todas as regiões do país – inclusive no Centro-Oeste, que não havia registrado casos na 1ª edição. Conflitos fundiários e violência de gênero estão entre as principais causas dos assassinatos de quilombolas no Brasil. Ao menos 13 quilombolas foram mortos no contexto de luta e defesa do território.
A pesquisa também revela que a violência contra quilombolas se acentuou nos últimos cinco anos. Isto porque a 1ª edição da pesquisa mapeou 38 assassinatos ocorridos no período de dez anos (2008-2017). Em 15 anos, 70 quilombolas foram assassinados (2008 a 2022).
Quando comparado à 1ª edição, referente aos anos de 2008 a 2017, a média anual de assassinatos que era de 3,8 passou a ser de 6,4 assassinatos ao ano. O número representa quase o dobro da média anual de assassinatos do levantamento anterior. Nos 10 anos analisados na 1ª edição, o registro de mais de quatro assassinatos de quilombolas ano foi uma exceção – apenas dois anos ultrapassaram esse número.
Nesta segunda edição, no entanto, 4 assassinatos de quilombolas foram registrados nos anos com menor número de violência no período analisado. Os anos de 2019 a 2021 registraram picos de 8 assassinatos.
A pesquisa ainda revela que em, ao menos 15 desses crimes, as pessoas assassinadas eram lideranças reconhecidas pelas comunidades.
Outro destaque do novo estudo é a alta ocorrência de feminicídios. Dos 32 assassinatos, em 9 registros as vítimas são mulheres. Em todas as ocorrências foi verificado que o assassinato ocorreu pelo fato de as vítimas serem mulheres, com atual ou ex-companheiros como os atores da violência.
Ainda que remeta à esfera privada das relações, as organizações compreendem que as violências contra as mulheres são reflexo da luta política desempenhada por elas no quilombo na defesa do território e na sobrevivência das comunidades.
Assim como os dados sobre assassinato, a proporcionalidade de mulheres quilombolas assassinadas dobrou no último período, com o registro de nove feminicídios quilombolas em cinco anos (2018-2022), enquanto oito mulheres quilombolas foram assassinadas no período de dez anos abarcados no primeiro volume (2008-2017).
Além de assassinatos, o estudo traz um levantamento de violações de direitos sofridos por comunidades quilombolas em que houve identificação de assassinato, a situação fundiária destas comunidades quilombolas e estudos de casos.
A pesquisa é lançada no marco de três meses do assassinato de Maria Bernadete Pacífico, ocorrido no dia 17 de agosto deste ano. Mãe Bernadete era do Quilombo de Pitanga dos Palmares, coordenadora da Conaq, Yalorixá e mãe de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos – o Binho do Quilombo –, também liderança quilombola, assassinado em 2017 em uma situação de conflito e luta pelo território. A liderança integrava o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). De acordo com a assessoria jurídica da Conaq, as investigações sobre o caso seguem em andamento pela Polícia Civil.
Ainda que o assassinato de mãe Bernadete não esteja no período analisado na pesquisa, dados ainda parciais de 2023 revelam que 7 quilombolas foram assassinatos este ano.
“O Estado brasileiro precisa tomar medidas imediatas para a proteção das lideranças de todo o Brasil. É dever do Estado garantir que haja uma investigação célere e eficaz e que os responsáveis pelos crimes que têm vitimado as lideranças desses Quilombos e de tantos outros sejam devidamente responsabilizados. É crucial que a justiça seja feita, que a verdade seja conhecida e que os autores sejam punidos. Queremos justiça para honrar a memória das nossas lideranças perdidas, mas também para que possamos afirmar que, no Brasil, atos de violência contra quilombolas não serão tolerados.”, destaca o coordenador executivo da CONAQ, Biko Rodrigues.
Conflitos fundiários
Em 10 comunidades das 26 comunidades em que foram registrados assassinatos não há processos abertos no Instituto Nacional de Reforma e Colonização Agrária (Incra), autarquia responsável pela regularização fundiária dos territórios quilombolas. Nos que se encontram nessa situação, 70% dos assassinatos foram motivados por conflitos fundiários, ou seja, 7 assassinatos.
Já entre os 11 quilombos que estão totalmente ou parcialmente titulados, os conflitos fundiários representaram 27% dos assassinatos. Dos três assassinatos registrados por essa motivação, dois aconteceram em territórios apenas parcialmente titulados.
Um olhar sobre a violência registrada nos quilombos que possuem algum título revela que a garantia do território é essencial para a amenização da violência resultante de conflitos fundiários, mas que é preciso avançar na efetivação de outras políticas públicas para proteção das famílias. Já a violência de gênero, por exemplo, é constante em todas as fases do processo de titulação.
“A titulação integral dos territórios é garantia de segurança à vida dos quilombolas, uma vez que retira suas terras do mercado e aumenta a autonomia de gestão das áreas, e com isso diminui o assédio de grileiros, da especulação imobiliária. No entanto, para enfrentar a violência contra quilombos é necessário também que os territórios quilombolas também sejam local de desenvolvimento de políticas públicas, como de prevenção à violência contra a mulher, de proteção a defensores e defensoras de direitos humanos, e outras políticas em que se reconhece as realidades específicas deste público”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Kathleen Tiê.
De acordo com a Fundação Palmares, há 1.805 processos abertos no Incra para regularização fundiária de territórios quilombolas.
Recomendações
Para cessar o conjunto de violência contra as comunidades quilombolas, as organizações listam um conjunto de recomendações a serem adotadas por diferentes esferas de governo. Neste rol, a adoção de medidas para avanço e fortalecimento da política de regularização fundiária é um dos destaques. As organizações recomendam que o Estado e municípios elaborem planos de titulação dos territórios quilombolas, com metas concretas anuais, orçamento adequado e estrutura administrativa adequada, para a titulação dos territórios quilombolas dentro de um prazo razoável.
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Já no que se refere a proteção de lideranças quilombolas, a pesquisa aponta a necessidade de revisão da política de proteção a defensores e defensoras de direitos humanos, mediante participação social da sociedade, e a criação, por parte do Ministério Público Federal e estaduais, de comissão ou grupo de trabalho para acompanhar os casos de assassinatos das lideranças quilombolas; entre outras medidas.