Em países com hiperinflação, o caminho inicial para a estabilização é definir uma moeda de referência – em geral, o dólar – para a fixação dos preços. Em vez do dólar, o Real criou a URV (Unidade Real de Valor), uma moeda virtual, mas amarrada ao dólar. O Banco Central garantia que jamais passaria de um dólar. Mas poderia cair de forma ilimitada, sem interferência do banco.
Passado o período de transição, criou-se o Real tomando como referência a URV – e, por consequência, o dólar.
No dia do lançamento do Real houve passeatas das centrais sindicais,
O Plano Real começou pela introdução da URV (Unidade Real de Valor), um moeda virtual, destinada a substituir a dolarização, permitindo a transição suave para a nova moeda que seria criada. Substituía a dolarização.
Assim como no Cruzado, contratos foram convertidos em URV. Em determinado momento, anunciou-se a criação do Real, substituindo a URV e o Cruzado Novo. E definiu-se não apenas a paridade com o dólar, mas uma faixa de flutuação. O Banco Central garantia que não deixaria o Real valer mais que um dólar. Mas, para baixo, não havia limites para a queda.
Ao mesmo tempo, fixava a taxa básica de juros da economia em 45% ao ano. Era evidente que haveria uma arbitragem do dólar. O investidor trazia dólares, convertia em reais e aplicava a 45% ao ano, tendo a garantia de que havia um teto para a valorização do real. Só em agosto de 1996 a taxa caiu para 12,5%.
Na partida do Real, o valor do dólar caiu para R$ 0,846. Só em outubro de 1996 alcançou a paridade de R$ 1,00.
O resultado óbvio foi o estrangulamento da balança comercial brasileira.
Quando os efeitos do câmbio sobre a balança comercial ficaram mais nítidos, houve uma celebração inesperada do Ministro da Fazenda Pedro Malan. Dizia que a redução do saldo era saudável porque abriria espaço para a entrada de investimentos.
De minha parte, não conseguia entender o movimento do câmbio. Quando o Real foi anunciado, era comentarista da TV Bandeirantes e rechacei a ideia de que o plano jogaria o país em uma recessão. A transição da URV para o Real não teria essas implicações. Mas a regra cambial adotada e, principalmente, a loucura de uma taxa básica de 45% ao ano, era incompreensível.
Em um primeiro momento, o fim da hiperinflação trouxe uma multidão de pessoas para o mercado de consumo. O país ficou a bola da vez, ao lado da China e da Índia. Com os avanços da telemática e da logística, previa-se que o Brasil seria a base para todas as multinacionais que pretendessem avançar nos mercados sul-americano e africano.
Mas com o câmbio supervalorizando, as taxas de juros explodindo e o crédito escasseando, a crise era inevitável e já estava nítida no final de 1994. A agricultura foi destruída com a chamada âncora verde.
O câmbio era impraticável, mas tornou-se a bandeira ideológica do Real, principalmente depois que caiu o Ministro da Fazenda Rubens Ricúpero e entrou o jovem e estouvado Ciro Gomes. Falar contra a política cambial tornou-se uma espécie de crime de lesa pátria.
O crucial 1995
No primeiro semestre de 1995, já era nítido que a quebradeira da economia seria de proporção inédita. Nos primeiros meses do ano, ainda houve problemas envolvendo o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Ele visitou a fazenda de Fernão Bracher e a imprensa transformou em escândalo, como se insiders precisassem ser feitos em fazendas fora da cidade.
No lugar de Pérsio entrou Gustavo Loyolla que insistiu na manutenção da taxa de 45% ao ano em cima de um argumento só possível em um país de ignorantes midiáticos. Disse que não poderia baixar de uma vez a taxa porque, se precisasse subir de novo, teria que dar um salto, e o papel do BC era evitar os saltos – um argumento sem pé nem cabeça. Em qualquer caso de corrida cambial, Bancos Centrais aumentam as taxas de juros para abortar a manobra e tratam de trazer para um patamar normal o mais rapidamente possível.
Mas o país estava cego com o Plano Real. Em maio, em minha coluna na Folha, passei a alertar para a quebradeira que vinha pela frente. Baseava-se nas muitas palestras que fazia na época. Em cada localidade, especialmente no interior, vinham empresários relatando um quadro trágico e indagando se só ocorria na sua cidade, já que Jornal Nacional e mídia insistiam em apresentar a economia como um céu de brigadeiro.
Em abril e maio passei a insistir nas previsões de quebradeira. Os economistas do Real rebatiam através de dois jornalistas. Na Folha, Gilberto Dimenstein publicava artigos repassados por Cláudio Considera, taxando os críticos do Real de “lobistas da Fiesp”. Em O Globo, Márcio Moreira Alves taxava os críticos de “lobistas do Naji Nahas”.
Nos dois casos, era evidente ser eu o alvo. Em um almoço com Delfim Neto, ele sugeriu que passasse a taxar a ambos de “chapa branca”. Disse-lhe que não. A desmoralização teria que ser através de argumentos.
Na discussão entrou também André Lara Rezende, que escrevia quinzenalmente para a Folha e, juntamente com Luiz Carlos Mendonça de Barros e outras raposas de mercado, havia adquirido a distribuidora da Pirelli em São Paulo. Citou artigo no New York Times que criticava os “palpiteiros” – aqueles que se baseavam na observação empírica para discutir economia.
Respondi que não havia teoria que explicasse como um atacadista com R$ 8 bilhões de faturamento (o Atacado Martins, o maior do país na época) teve R$ 10 milhões de lucro e uma corretora com R$ 14 milhões de capital teve R$ 140 milhões de lucro.
André me convidou para um almoço, para tentar um armistício. Hoje em dia, ele é um ardente defensor de que os cursos de economia deveriam privilegiar também o conhecimento empírico como uma das formas de análise da economia.
Minha tese era simples. Com o fim da inflação, houve um crescimento imediato na demanda. Depois, com os juros e o câmbio, já no final de 1994 havia os primeiros sinais de reversão. Na expansão, famílias e empresas se endividam. Se o BC consegue prever reversão da economia, seu papel deveria ser o de flexibilizar o crédito, para permitir aos devedores a volta aos patamares anteriores de endividamento. Em vez disso, aplicou um choque que paraliosu a economia – da mesma maneira que Joaquim Levy algumas décadas depois.
A polêmica varou o mês de maio de 1995. Mas, a cada dia, ficava mais nítido o alastramento da crise. Até que em meados de junho, o então Secretário de Política Econômica, José Roberto Mendonça de Barros, me ligou para admitir que eu tinha razão nas minhas previsões. Uma semana depois, foi a vez de Fernando Henrique Cardoso fazer um pronunciamento admitindo o agravamento da crise.
O Plano Real e o encilhamento
Desde o Plano Cruzado, adotei por hábito comparar o ciclo da economia brasileira de um século atrás. O que me chamou a atenção foi uma obra prima pouco conhecida da historiografia brasileira, “América Latina, Males de Origem”, da Manoel Bomfim.
Bomfim não chegava a trocar em miúdos o “encilhamento”. Mas contava como o grande capital assumir os negócios do Estado e criava a crise. Em seguida, recorria-se aos “financistas” – pessoas que estudaram a nova ciência, da economia, e que garantiam ter a solução para todos os problemas. E o que era um problema do Estado transformava-se em um problema do país.
Tudo batia. A financeirização absurda das décadas anteriores, FHC simulando um Campos Salles de araque.
Mas foram necessários mais alguns anos para a ficha cair. No final dos anos 90, debrucei-me sobre algumas reformas monetárias, especialmente as de John Law, um escocês que se mudou para a França no início do século 18, fundou o Banque Generale, o primeiro banco central da França, que instituiu o papel-moeda substituindo o ouro e a prata. Depois, montou o “Esquema do Mississipi”, uma bolha econômica que explodiu.
Lembrei-me dos primeiros planos econômicos, de como a definição das regras de conversão de moedas permitia grandes lucros (ou perdas) financeiras. Depois de escrever um artigo sobre Campos Salles, caiu a ficha de pesquisar o Encilhamento – a instituição do papel-moeda por Rui Barbosa, primeiro Ministro da Fazenda da República, que explodiu em uma bolha gigantesca.
Lembrei-me que, em fins de 1994, houve um seminário na sede do Banco Central, no Rio de Janeiro. E, lá, Gustavo Franco me presenteou com sua tese sobre o Encilhamento, que venceu o Prêmio BNDES.
Fui atrás do livro nas minhas estantes, mas não encontrei. Mandei, então, um e-mail para ele, pedindo uma nova cópia da tese. Sua resposta foi surpreendente:
– Não vou dar não, porque você vai usar o livro para me ferrar!
Ali era o caminho. Por coincidência, logo depois encontrei o livro. Lá, mostrava como a instituição do papel-moeda foi tentada pelo último Ministro da Fazenda do Império, Conde Figueiredo, e como foi combatido pelo então advogado e jornalista Rui Barbosa. Depois, com a Proclamação, Rui se torna o primeiro Ministro da Fazenda da República, instituiu o mesmo plano, com uma diferença: deu o monopólio da emissão de dinheiro para o Conselheiro Mayrink.
A partir daí, todos os golpes – ou “tacadas”, como eram chamados por seu cunhado – foram tentadas. Rui tornou-se sócio de várias empresas do Conselheiro Mayrink. Até que explodiu uma crise bancária na Argentina, o mercado de câmbio virou de pernas para o ar. Preocupado em preservar os negócios do seu sócio, Rui foi tergiversando até que a crise tornou-se insustentável. Assume, então, Floriano Peixoto, que expulsa Rui para Londres.
Não vou entrar em detalhes, agora, sobre a personalidade de Rui Barbosa, seja como Ministro da Fazenda ou como advogado. Está em plenas condições de figurar no panteão da glória de um país que premia golpistas e os transforma em herói.
Em todo livro, a preocupação de Gustavo não foi denunciar as manobras de Rui, mas entender o que faltou para que o golpe da financeirização se consumasse.
Estava nítido que o Real valeu-se de outras experiências de remonetização para permitir grandes “tacadas”.
O golpe do Real
Aí ficou nítido o golpe.
A primeira etapa consistiu nas regras de remonetização. No Encilhamento, Rui deu o monopólio ao banco do Conselheiro Mayrink e a missão de reduzir a dívida pública – o que nunca ocorreu. No Plano Real, decidiu-se que a remonetização se daria em troca de dólares. Ou seja, quem trouxesse dólares, poderia trocar por reais. Com isso, transferiu para a Avenida Paulista (que ainda era o centro financeiro) o controle da liquidez no país.
Mas não ficou nisso. A segunda jogada foi no mercado futuro de câmbio. Em todo programa de estabilização baseado no dólar, a tendência das multinacionais é se protegerem contra desvalizações futuras do real. A regra tácita instituida provocava uma apreciação do real. Mas, para garantir o cabo de força do mercado futuro, seria necessária a participação de outros grandes players do lado dos economistas do Real.
A prova dos nove foi em um almoço com o ex-presidente de um banco norte-americano, que confirmou minhas suspeitas. Meses antes da troca de moedas, ele foi procurado pelo economista Winston Fritsch que, para sua surpresa, lhe passou a lógica da política cambial do Real.
O ex-presidente admite que nunca ganhou tanto dinheiro na vida. Não ganhou mais porque, em determinado momento, julgou que nem o BC conseguiria segurar o teto do câmbio.
Assim como no Encilhamento, as jogadas dos economistas do Real mataram completamente qualquer possibilidade do país ingressar na nova etapa da economia como uma potência. Câmbio apreciado, juros extorsivos, o BC completamente capturado pelo mercado. Todos ficaram muito ricos. Instituiu-se a era da financeirização que provocou a desindustrialização no país, tirou todo o vigor da economia, especialmente depois que o modelo foi mantido pelos governos do PT.