As grandes mobilizações sindicais de 40 anos atrás, que possibilitaram o surgimento
de Lula, desapareceram com as mudanças profundas do mundo do trabalho
Entrevistado pelo jornalista Kiko Nogueira, no DCM, o professor da Uerj, João Cesar de Castro Rocha, levantou temas interessantes para o debate que a esquerda vem travando depois do resultado eleitoral do primeiro turno das eleições municipais.
Especialmente no que diz respeito ao diagnóstico, Castro Rocha apresenta argumentos que merecem atenção. Ele destaca que parte considerável da juventude, formada por rapazes e moças entre 20 e 25 anos de idade, veem o PT como o partido do establishment e o identificam com o sistema, pois o PT venceu cinco das seis últimas eleições presidenciais, uma circunstância inédita na história do país.
Então, esse jovem, por mais estapafúrdio que pareça para as pessoas mais informadas e com bom nível de consciência política, é capaz de dizer "sou antissistema, por isso voto na oposição ao PT", ou "sou neoliberal e antissistema."
Penso que a distorção apontada pelo professor encontra terreno fértil porque a extrema-direita está levando vantagem na disputa ideológica e cultural por corações e mentes na sociedade, devido a múltiplos fatores que dariam margem a muitos artigos.
Outro acontecimento da história recente lembrada pelo historiador, e que contribuiu para o avanço da direita, foi o esvaziamento das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, por obra e graça do papado de João Paulo II. Com capilaridade em todo o país e forte presença em toda a América Latina, as CEBs levavam suas propostas progressistas nas igrejas, bairros pobres, hospitais, presídios, etc. Esses grupos católicos, criados para adequar a igreja às resoluções do Concílio Vaticano II, motivavam os fieis para a organização e a luta política e social. As CEBs tiveram inclusive importante papel na fundação do Partido dos Trabalhadores.
Como jovem militante petista nos anos 80, pude testemunhar a força das CEBs. A politização partia da própria pregação do evangelho, pautada na libertação do povo e no seu protagonismo político. A saída de cena das CEBs abriu caminho para as denominações neopentecostais, que passaram a dar as cartas nas favelas e bairros populares com sua teologia da prosperidade.
Para o professor, a esquerda atual se ressente também do quase total desaparecimento das associações de moradores, que há algumas décadas organizavam a população para lutar contra a carestia, por casa, asfalto, água, luz, saúde e educação. Essas associações tiveram atuação marcante, principalmente nas periferias dos grandes centros urbanos.
Vale lembrar que o ativismo nessas entidades de moradores fez com que muitos de seus militantes ganhassem proeminência como dirigentes sindicais e partidários, especialmente na CUT e no PT. Nos anos 80 e 90, as associações de moradores faziam parte do cotidiano de praticamente todos os bairros periféricos das metrópoles brasileiras.
Eu acrescentaria mais um motivo importante para a redução da influência do pensamento progressista no Brasil: a perda de relevância do movimento sindical combativo. O papel dos sindicatos extrapolou a luta corporativa por salários e benefícios chegando a ter peso considerável na redemocratização do país. Também foi uma escola de quadros, que depois ocupariam grandes espaços nos poderes Legislativo e Executivo, inclusive na presidência da República. Mas o mundo do trabalho virou de ponta a cabeça com a Quarta Revolução Industrial, e os trabalhadores, em geral, não querem mais saber de sindicato. Sem falar que a reforma trabalhista acabou com a principal fonte de financiamento das entidades, o imposto sindical.
Voltando à análise de Castro Rocha: ele levanta a tese segundo a qual as distorções que forjam pessoas "de direita e antissistema" só vicejam no terreno da precariedade em que vive parcela significativa da nossa população. Segundo o historiador, não é possível romper com as amarras que aprisionam tanta gente em uma vida precária no âmbito das conciliações feitas em nome da governabilidade. Sua tese é que uma reforma tributária autêntica e uma reforma agrária que democratize de uma vez por todas o acesso à terra não se darão nos marcos da conciliação.
Comentário final meu: como tornar realidade essas reformas com uma correlação de forças tão desfavorável, ante o Congresso Nacional de composição mais reacionária politicamente e retrógrada socialmente da história?
Essa é a pergunta cuja resposta vale um milhão de dólares.
Como diz o ex-ministro José Dirceu, chega a ser um milagre que Lula esteja conseguindo governar diante de tamanha adversidade.