Em Futuros Amantes, Chico Buarque imagina que daqui a milênios, quando o Rio for uma cidade submersa, escafandristas virão explorar os segredos da sua amante, sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma. E que sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização.
Imaginemos que sábios, daqui a milênios, encontrem, entre vestígios de antiga civilização, a sentença de Rubens Casara, da 43ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro. Casara absolveu um homem, preso em flagrante, que mantia em sua casa plantio da erva da qual se extrai a maconha.
Outros milênios a partir daí correrão para que os sábios do futuro expliquem esse fragmento de estranha civilização. Porque descobrirão que havia duas drogas muito populares.
Uma era depressora do Sistema Nervoso Central, agindo ainda sobre fígado, coração, vasos e parede do estômago. Com o aumento da concentração da droga no organismo a pessoa apresentava diminuição da resposta aos estímulos, fala pastosa, dificuldade para andar. Em concentrações mais altas o indivíduo entrava em coma e podia morrer. Dependendo da quantidade ingerida, os efeitos em geral eram diminuição da capacidade de discernimento, entorpecimento fisiológico, redução da capacidade de tomar decisões racionais, ansiedade, depressão, parada respiratória e morte. Entre os consumidores dessa droga, cerca de 11% se tornavam dependentes. Estava claramente associada a doenças graves, como câncer, cirrose hepática, etc.
Outra provocava euforia, sonolência, perda de noção do tempo e espaço, perda de coordenação motora, de equilíbrio, taquicardia, perda temporária de inteligência. Tal como a outra, provocava dependência em aproximadamente 11% dos usuários e estava associada a doenças graves, câncer, problemas respiratórios, etc.
A primeira droga era lícita, estimulada pelo meio social, propagandeada nos órgãos de comunicação, tinha experts com grande prestígio internacional, admirados pela técnica e refinamento de seus saberes.
A segunda era ilícita. Quem usava ou comercializava podia ter sua vida, ou parte dela, destruída pelo Estado, que sobre eles fazia desabar toda a sua feroz capacidade repressiva. Em todo o mundo, milhares de pessoas eram presas pelo seu uso ou comercialização. O comércio ilegal gerava uma rede de delinquência, e por vezes organizações poderosas, praticamente subestados, nas quais tudo se podia, toda sorte de violências, assassinatos, torturas. Recursos imensos eram desperdiçados pelos Estados para combater essa droga, drenando riqueza que poderia ser usada para melhorar a condição de vida das pessoas que, lembrarão os sábios do futuro, viviam em estruturas sociais iníquas, em que pouquíssimos concentravam praticamente toda riqueza e bilhões viviam as agruras da fome e de uma vida miserável e sem esperança.
Competirá em vão aos sábios do futuro explicar essa loucura social. Muitas torpezas e muita estupidez histórica podem ter uma lógica interna, absolutamente insustentável do ponto de vista moral, mas uma explicação. Pode ser deslindada, por exemplo, a estupidez de queimar mulheres como bruxas na Idade Média como manutenção e reprodução da estrutura de poder da Igreja Católica. Podem ser deslindados os motivos asquerosos pelos quais judeus foram massacrados ao longo da História. Mas no caso das duas drogas cujos efeitos descrevi, a primeira o álcool, a segunda a maconha, os sábios do futuro poderão concluir que os vestígios desta estranha civilização indicavam que foi o tempo da mera esquizofrenia social, ou seja, ausência de racionalidade que decorre da dissociação com o real.
A sentença do juiz Rubens Casara é antológica porque em poucas palavras, com uma clareza solar, de um lado faz emergir todos os problemas filosóficos, sociais, morais e jurídicos que dizem respeito à questão das drogas, e de outro o respeito a garantias e direitos fundamentais.
A droga é uma questão de saúde pública, não de polícia. Punir um adicto ou impor qualquer sanção ou restrição de direito a ele é o mesmo que punir quem sofre de, digamos, enxaqueca. A adição é doença. E quem consegue usar recreativamente maconha ou qualquer outra droga sem se tornar adicto deve ser tratado como todos nós outros que ingerimos álcool social e recreativamente.
O uso é uma decisão do indivíduo. Sendo uma decisão do indivíduo, a licitude de sua obtenção deve ser, por inexorável decorrência lógica, admitida, com o que milhares de pessoas deixarão de ter suas vidas destruídas pelo envolvimento com a proibição indevidamente decretada pelo Estado. E estas pessoas são, quase sempre, os pequenos, homens e mulheres pobres sem qualquer esperança de uma vida melhor que, por isso, se arriscam a perder parte de suas vidas em cadeias ou, às vezes, a própria vida.
Afora esses aspectos mais gerais, filosóficos, a sentença do juiz Casara demole práticas perversas da persecução penal às drogas. Por exemplo, a associação automática, a priori, entre quantidade e tráfico. A decisão faz prevalecer a presunção de inocência, que inexiste em regra na prática policial e judiciária nesses casos. Examinando as provas com lógica implacável, conclui que as mudas, não obstante a quantidade, somente poderiam ser para uso próprio. Na esmagadora maioria dos casos policiais, promotores e juízes agem como se houvesse um software em suas mentes. Quantidade x, enter, condenação por tráfico. No julgamento em curso no STF um ministro chegou a propor a exata quantidade de droga que seria suficiente para caracterizar o tráfico. Sim, isto facilitaria muito. Juízes não precisariam mais usar a faculdade de raciocinar e colher provas e também dispensar esse chato princípio da presunção de inocência.
Ressalto, por fim, a parte final da fundamentação do juiz Casara porque vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos. Tudo que precisa ser dito sobre esse aspecto nela está: “ ... viola o princípio da proporcionalidade punir com pena privativa de liberdade um indivíduo que, para fugir dos riscos gerados tanto pela ‘indústria da ilegalidade’ quanto pela opção política que aposta no modelo bélico de enfrentamento de um problema que é, na realidade, de saúde pública, opta por cultivar a substância que pretende usar”.
Os sábios do futuro ficarão perplexos com esta civilização ensandecida, mas uma coisa não poderão deixar de dizer: investigando os vestígios de uma estranha civilização, havia numa cidade chamada Rio de Janeiro um juiz.
*Marcio Sotelo Felippe é advogado e jurista. Exerceu o cargo de procurador geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000