A notícia de que o órgão governamental criado por Michel Temer pichou o verbete de Paulo Freire na Wikipédia com a expressão “doutrinação marxista”http://www.revistaforum.com.br/2016/06/30/orgao-do-governo-temer-altera-pagina-de-paulo-freire-na-wikipedia-doutrinacao/ é um simbolo poderoso da natureza medíocre do governo interino. Aqueles que chegaram ao poder usando o atalho do golpe parlamentar organizado por centenas de políticos corruptos que temem ser punidos, não tem qualquer compromisso com a natureza plural e democrática do Estado brasileiro.
É inconstitucional, patética e anacrônica a tentativa do governo interino de reinstaurar algum tipo de censura anticomunista. Os autores da pichação no verbete de Paulo Freire não compreendem o momento histórico que vivemos. Pior, eles ignoram completamente a impossibilidade de controlar os fluxos de informação da internet.
A arquitetura da rede mundial de computadores é extremamente generosa. A internet é alimentada diariamente por milhões de usuários. Existem milhares de servidores grandes e pequenos conectados à rede mundial de computadores. Não há controle sobre os conteúdos divulgados. No ciberespaço as fronteiras simplesmente não existem e isto dificulta a repressão estatal aos abusos cometidos.
Uma página removida num local reaparece rapidamente em outro servidor fora dos limites territoriais da autoridade que a censurou. E seu continuará a ser acessado e comentado em todos o planeta para o desespero do censor. Nem mesmo o poderoso governo dos EUA consegue impedir o WikiLeakes de divulgar os arquivos dos crimes de guerra cometidos no Iraque e os segredos sujos da diplomacia norte-americana.
Na internet, podemos encontrar com facilidade tanto O Capital de Karl Marx na íntegrahttp://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/ocapital-1.pdfhttp://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/ocapital-2.pdf quanto o famigerado livro Minha Luta de Adolg Hitler https://www.radioislam.org/historia/hitler/mkampf/pdf/por.pdf. E por mais que alguns prefiram um ao outro, nem os marxistas nem os nazistas conseguirão impedir a divulgação de uma obra ou da outra. A propósito, o livro Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire também pode ser encontrado na internet http://forumeja.org.br/files/PedagogiadoOprimido.pdf.
A pedagogia do opressor não funciona na internet. Aqueles que tentam empregá-la só conseguem uma coisa: ser mundialmente ridicularizados.
Numa de suas obras mais conhecidas, Aristóteles ensina que:
“... es honroso y conveniente en ciertos casos experimentar el sentimiento de la indulgencia que perdona las faltas. Pues bien; la indulgencia legítima no és más que el sentido judicioso y recto del hombre de bien; y el sentido recto del hombre de bien es el sentido de la verdad.” (Aristóteles, Los Três Tratados de la Ética, I. Moral a Nicómaco, Libro VI, Capítulo VIII, Librería El Ateneo Editorial, Buenos Aires, Argentina, 1950, p. 246)
Os cientistas da computação que definiram a arquitetura aberta da internet eram homens de bem. Eles tinham o sentido reto da verdade. Em razão disto, eles foram capazes de perdoar as pessoas que queriam compartilhar conteúdos que eles mesmos não gostariam de compartilhar e acessar. O mesmo não se pode dizer das pessoas nomeadas por Michel Temer.
Aqueles que picham conteúdos que julgam inadequados segundo critérios mesquinhos, inconstitucionais e anacrônicos, que se expõe à execração pública e mundial em razão de estarem contrariando a generosidade intrínseca da internet, não sabem o que á a verdade reta, nem podem ser considerados homens de bem. De fato, eles parecem ignorar totalmente a obra de Aristóteles. Quando eles começarão a pichar o verbete do filósofo grego na Wikipédia?
A pedagogia do opressor neste caso não é uma antítese da pedagogia do oprimido. De fato, o próprio opressor age porque é oprimido pela ignorância (acerca da arquitetura da internet) e pela incapacidade de experimentar “...el sentimiento de la indulgencia que perdona las faltas.”
É justamente da carência deste sentimento que Paulo Freire se ocupou ao afirmar:
“Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida.” (Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire, Paz e Terra, São Paulo, 2015, p. 65)
Os autores da pichação no verbete de Paulo Freire são opressores oprimidos pela ignorância e pela incapacidade de perdoar aquilo que consideram faltas (fazer ou consumir propaganda marxista). As faltas deles contudo, não pode ser perdoadas.
Os agentes públicos devem respeitar o princípio da legalidade (art. 37, da CF/88). O ato de fazer pichações anticomunistas é claramente inconstitucional. A CF/88 garante a liberdade de consciência e de expressão a todos (inclusive aos comunistas) não cabendo ao Estado monitorar ideologicamente o que pode ou não pode ser divulgado na rede mundial de computadores.
No Brasil, a punição de militares é um tabu. Para compreender este fenômeno, devemos recorrer a Freud:
“É característica das proibições obsessivas uma imensa deslocabilidade; elas se estendem de um objeto a outro por quaisquer vias de conexão e tornam também esse novo objeto ‘impossível’, como disse com acerto uma de minhas pacientes. Por fim, a impossibilidade tomou conta do mundo inteiro. Os doentes obsessivos se comportam como se as pessoas e coisas ‘impossíveis’ fossem portadoras de uma perigosa infecção que está pronta a se transmitir por contato a tudo que se encontra nas proximidades. Destacamos essas mesmas características de contagiosidade e de transferibilidade no início deste ensaio, quando descrevemos as proibições do tabu. Também sabemos que alguém que transgrediu um tabu pelo contato com alguma coisa que é tabu se torna ele mesmo tabu, e ninguém tem permissão de entrar em contato com ele.” (Totem e Tabu, Sigmund Freud, L&PM Editores, Porto Alegre, 2013, p. 69/70)
Tudo que está ocorrendo neste momento é uma consequencia da não punição dos militares que cometeram crimes durante a ditadura. O comportamento do general nomeado por Michel Temer evidencia que a própria democracia brasileira é considerada um tabu.
Aqueles que hoje picham o verbete de Paulo Freire na Wikipédia, em breve sentirão a necessidade obsessiva de proibir a impressão de livros como Pedagogia do Oprimido. O que fazer com as pessoas consumiram os livros proibidos e que ousam empregá-los em sala de aula? Elas devem ser exterminadas?
Qualquer um que tenha, direta ou indiretamente, entrado em contato com as obras de Paulo Freire terá que ser purificado. Os próprios agentes da repressão virtual terão que se submeter a algum tipo de cerimônia expiatória. Afinal, eles mesmos violaram o tabu ao combaterem a propaganda marxista se expondo à ridicularização pública.
O renascimento da pedagogia do opressor neste governo interino não é apenas o sintoma de uma doença crônica. É uma excelente oportunidade para purgar todos os males que se abatem sobre a democracia brasileira. Liberais, artistas, democratas, comunistas, católicos, jornalistas etc… tem que formar uma frente ampla para defender a CF/88 dos ataques que ela está sofrendo. Caso contrário, os doentes obsessivos nomeados por Temer se sentirão a vontade para instaurar um verdadeiro regime de terror na internet e fora dela.