O escritor O. Henry tinha um conto sobre uma menina que precisa de toda energia interna para superar uma grave doença no inverno rigoroso dos Estados Unidos. Da sua janela, ela passa a acompanhar uma folha, de uma trepadeira do muro em frente seu quarto.
Todo dia ela abria a janela para conferir se a folha resistia. Outras folhas caiam, mas a folha companheira resistia. E resistiu até a menina se curar.
Curada, foi até o muro e descobriu que alguém da família, percebendo a simbiose emocional, simplesmente havia colado a folha no muro.
Vendo a crise econômica surgir, a democracia desmoronar, minha folha de inverno é um pé-de-moleque na padaria perto de casa. Diariamente saio de casa, passo na padaria, compro dois pés-de-moleque e dou minha caminhada diária.
Em 2010 enfrentei uma audiência hostil, em uma palestra em Fortaleza para um fabricante de produtos agrícolas. Coronéis vociferavam contra o Bolsa Família. Calei-os recorrendo ao pé-de-moleque: mensalmente, dois pés-de-moleque por dia útil era mais do que o valor de uma pessoa acolhida pelo Bolsa Família.
Através do pé-de-moleque, acompanhei dia a dia a vida do dono da fábrica, mesmo sem saber quem era. Era uma empresa pequena, sim. Mas o produto era gostoso, a embalagem caprichada. No início, ele tinha dificuldades em definir o padrão. Às vezes acertava em cheio, às vezes não. Com o tempo, conseguiu manter o mesmo padrão. E eu acompanhando seu aprendizado.
Quando a crise começou, o pé-de-moleque sumiu da prateleira perto do caixa. O caixa me indicou outro, de marca conhecida. Não era a mesma coisa.
Fiquei imaginando a saga do empreendedor. Provavelmente uma pequena empresa que decidiu dar um passo maior. Juntou dinheiro, conseguiu um financiamento bancário, no curtíssimo período em que o crédito barateou, adquiriu uma máquina, depois outra, montou um departamento comercial perrengue e partiu para a luta, colocando o pé-de-moleque como quem coloca um filho no mundo.
Lembrei-me de meu pai em Poços de Caldas, com sua Farmácia Central Salva Sempre, ou de meu tio Léo, com o Doces Mesquita, Coma e Repita, que nasceu do talento de minhas tias Rosita e Marta de reeditar o doce-de-leite argentino.
De repente, a crise surgiu como um ogro faminto, avançando sobre os pequenos, arrebentando os sonhos de crescer, os credores avançando como harpias ensandecidas.
Creio que foi essa loucura, fruto do plano de estabilização de Roberto Campos e Bulhões, que me fez mais tarde enveredar pela economia. Queria entender esse monstro que aparecia no horizonte durante as crises de estabilização, que eliminava empresas, empregos, arrebentava com a tranquilidade familiar.
O monstro que se abateu sobre a farmácia era filho direto de Campos. Comprava-se o remédio e se proibia de reajustar os preços, em um quadro inflacionário. Quando o farmacêutico ia repor o capital de giro, a indústria já havia aumentado de novo seus preços. A cada renovação do estoque, realizava-se o prejuízo. Com giro maior, e adquirindo direto nas fábricas, os grandes varejistas nadavam de braçada. Os grandes tinham acesso a Campos; os boticários do interior, não.
Na época cheguei a compor uma peça com um título tirado de Carlos Drummond de Andrade, o “Congresso Internacional do Medo”, que começava com um arremedo da Cavalgada das Valquírias, e as palavras rituais, “juro, lucro, multa, mora, déficit / ágio, avo, quota, conta, prejuízo / muralhas de Jericó, trombetas de Josué / o imprevisível”.
Agora, indo diariamente na padaria, fico conferindo o pé-de-moleque com a mesma ansiedade da menina tísica apreciando a folha, com a mesma ansiedade do adolescente testemunhando a agonia diária do velho.
Dias depois, voltou o pé-de-moleque original. Imaginei que o dono tivesse se encalacrado com falta de capital de giro, fruto do desastroso plano Levy. Ou então, tivesse voltado com outra razão social, para se livrar do fisco. Era a mesma marca, a mesma razão social. Provavelmente vendeu algum bem para recompor o giro.
De lá para cá, o pé-de-moleque aparece, some por algum tempo, mas volta, persistente como a folha no muro, valente como a menina na cama.
Fico imaginando quanto tempo resistirá. E fico imaginando a democracia brasileira.
Desde a Proclamação, o país conviveu historicamente com golpes. Mas havia explicações históricas, sociológicas. Floriano endureceu para consolidar a República. Vargas veio no bojo da Aliança Nacional, uma mobilização do país. Mesmo 1964 foi fruto de uma corporação militar aliada com setores políticos. Mas, hoje? Hoje há o episódio inédito do país ter sido entregue a um grupo que, se não estivesse com o poder, estaria metido em inquéritos e processos, alguns deles mofando na prisão.
É inédito, é humilhante.
Fico imaginando em qual folha me agarrar, enquanto persistir a escuridão sem fim.